Sempre pensei muito sobre a distinção entre as coisas. No final, não há distinção. Interpretamos de acordo com o contexto que está dado. Assim, uma mesma ação ousada levará o título de coragem quando der bons frutos, e de irresponsabilidade quando malograr. O pai que castiga o filho, está traumatizando-o ou ensinando? E como saber, sem fazê-lo?
Dar-se em sacrifício para ajudar outrem: bondade sublime ou idiotice masoquista? Como saber? Dado o contexto em que vivemos, onde cada um só se preocupa consigo mesmo, parece que a segunda opção é a que vale. As pessoas cobram o bem que você lhes deixa de fazer, sem se aperceber do mal que lhe fazem.
Nunca tive más intenções, embora nem sempre tenha agido bem. Ou melhor, minto. Tive más intenções, mas que no momento me pareciam a justa retribuição aos ferimentos sofridos. Pura tolice! O mal nunca pode ser justo, o mal nunca pode ser o bem, por mais que tente se passar por ele. Mas como então, explicar o valor do sofrimento? Como desculpar-se o médico que fere o braço da criança em prantos, aterrorizada, em nome de um bem vacinal? Estará ele fazendo bem? Ou estará fazendo mal?
Dizem que o sofrimento ensina. Mas ensina o que? Ensina a sofrer?
E que um sofrimento menor capaz de aplacar outro maior é justificado. Eu já não sei o que dizer. Não me parece honesto decidir sobre um sofrimento que não se sente. O sofrimento alheio sempre nos parece mais ameno que aquele que consome nossa própria carne. Ou nossa própria alma.
E que um sofrimento menor capaz de aplacar outro maior é justificado. Eu já não sei o que dizer. Não me parece honesto decidir sobre um sofrimento que não se sente. O sofrimento alheio sempre nos parece mais ameno que aquele que consome nossa própria carne. Ou nossa própria alma.
Certa vez, conversando com uma pessoa muito querida, concluímos que não há sofrimento maior que aquele que aflige a alma. Desse-me Deus a possibilidade, não pensaria duas vezes em escolher a maior dor carnal em troca de completo alívio das aflições do espírito.
Mas não existe tal troca. Não existe tal alívio.
As dores do corpo são muito urgentes e, para saná-las, recorremos com pressa à quaisquer meios disponíveis. Colocamos o dedo queimado sob a corrente de água fria. Tomamos analgésicos para as dores do corpo. Usamos anestésicos para adormecer as feridas abertas. Um rapaz com a perna quebrada, não pensa senão em algo que lhe estanque a dor, mais que o sangramento. Buscamos o descanso quando o desgaste nos consome, quando os músculos dóem, quando continuar parece um enorme sacrifício. E buscamos o ar quando somos asfixiados! Respiramos, ofegantes, despertos novamente. São mesmo desejos muito urgentes!
Contudo, ainda mais urgentes são as dores da alma. Mas para estas não há remédio imediato. Não há procedimento que alivie a dor. Fazer uma cirurgia em um paciente, observá-lo com a pele cortada, a carne exposta, as vísceras remexidas, e sem anestesia, falar para que aguente, que a dor vai passar. Essa é a sensação de quem tem a alma aflita. A mente arde, seus pensamentos corróem como ácido. Não é possível pensar, agir. Tudo vira uma dolorosa confusão sem fim. Desespera-se por uma medida de alívio, mas nada pode parar a dor. Grita-se, chora-se, esperneia-se, tal qual faria o rapaz da perna quebrada, se deixado fosse no meio da multidão sem auxílio. Mas nenhum socorro vem.
Entretanto, o quadro é ainda mais tétrico. Não apenas falta um socorro imediato, mas também a previsão de alívio. Submetido à uma dolorosa cirurgia, o paciente ao menos conforta-se esperando que, ao término do procedimento, sua dor esmoreça, as feridas cicatrizem, os tecidos se recompanham, esqueçam o trauma a que foram submetidos e voltem a funcionar. Mas não com a alma. Nunca se sabe quando uma alma parará de doer. Talvez nunca. E essa incerteza corrói mais ainda. A falta de perspectivas positivas às quais se apegar mata. Náufragos, sem ter em quê se segurar, nadam sem parar. Não sabem se um dia encontrarão uma ilha onde se refugiar ou uma embarcação que os salve. Talvez todo sofrimento para se manter vivo seja inútil. Talvez fosse mais proveitoso se entregar à inevitável morte no mar, escapando ao menos da agonia da exaustão corporal. Entregar-se às ondas...
Tendo a morte como certa, de que vale uma vida de sofrimento?
Não há feridas à mostra, ossos quebrados, hematomas, sangue, febre. Nada diagnosticável. Nada compreensível para quem não sente. A dor segue incólume; o doente, esquecido, vagando sozinho, abandonado, invisível, incompreensível. Não se vêem mortos enterrados, sob a terra, sob as águas, sob as máscaras. Nada se sente por eles. Nada pode ser feito para ajudá-los.
Entretanto, o quadro é ainda mais tétrico. Não apenas falta um socorro imediato, mas também a previsão de alívio. Submetido à uma dolorosa cirurgia, o paciente ao menos conforta-se esperando que, ao término do procedimento, sua dor esmoreça, as feridas cicatrizem, os tecidos se recompanham, esqueçam o trauma a que foram submetidos e voltem a funcionar. Mas não com a alma. Nunca se sabe quando uma alma parará de doer. Talvez nunca. E essa incerteza corrói mais ainda. A falta de perspectivas positivas às quais se apegar mata. Náufragos, sem ter em quê se segurar, nadam sem parar. Não sabem se um dia encontrarão uma ilha onde se refugiar ou uma embarcação que os salve. Talvez todo sofrimento para se manter vivo seja inútil. Talvez fosse mais proveitoso se entregar à inevitável morte no mar, escapando ao menos da agonia da exaustão corporal. Entregar-se às ondas...
Tendo a morte como certa, de que vale uma vida de sofrimento?
Não há feridas à mostra, ossos quebrados, hematomas, sangue, febre. Nada diagnosticável. Nada compreensível para quem não sente. A dor segue incólume; o doente, esquecido, vagando sozinho, abandonado, invisível, incompreensível. Não se vêem mortos enterrados, sob a terra, sob as águas, sob as máscaras. Nada se sente por eles. Nada pode ser feito para ajudá-los.
Mas o sofrimento da alma é inevitável. Pois aquilo que faz a alma sofrer está por aí, em todo lugar, contaminando o ar, a água e os olhares. Inspira-se, bebe-se, sente-se o sofrimento por toda a parte, carecendo apenas da sensibilidade para ser por ele afetado. E quem sofre, faz sofrer! Machuca a todos. Quase num grito desesperado por socorro.. Um grito jamais capaz de transpassar o deserto ao redor. Um grito silencioso. Um grito que já nasce morto na garganta, afogado pelas águas desse mar.
Se eu amo? Claro que sim! Em especial as pobres criaturas sofredoras. Queria tanto poder fazer algo para lhes subtrair o sofrimento, mas toda tentativa redundou em piora. Perdoai meu fracasso contigo. Sinto-me como o cirurgião que, prometendo-te extrair o tumor, percebe-se incapaz e abandona a operação, deixando-te ainda com a doença e a barriga aberta a sangrar. Jamais devias ter confiado em mim, tão inexperiente doutor, cujas entranhas também dóem, sem que seja capaz de as apaziguar.
O amor parece só poder vir do sofrimento, pois só quem sofre é capaz de entender o que se passa noutra alma sofredora (ou só pode vir da felicidade?). Mas entender, compreender, querer, não são bastantes para ajudar. Jamais consegui te ajudar. Aliás, talvez tenha conseguido, em breves momentos. Espero que pelo menos um dia de tua vida tenha sido melhor graças a minha presença nele. Muitos meus assim o foram graças a ti, muito embora outros tenham sido bem piores pelo mesmo motivo... desculpe! Eu falo demais, e você não merece tais cobranças. Erramos os dois. Talvez eu mais. Nunca saberemos de verdade. Mas sempre tentei ter boas intenções.
E continuo as tendo. Por isso busco evitar o máximo possível mexer naquilo novamente. Descobri-me um péssimo cirurgião de almas. Não tenho estômago para mexer nas entranhas de um espírito. Muito mais fácil abrir o corpo, cortar, remendar e fechar. A cicatrização da alma, por sua vez, é muito mais lenta e complicada, e o mínimo erro pode deixá-la sangrando eternamente. Sem falar que não há instrumentos de proteção. Não há luvas para os cirurgiões de almas e é muito fácil se contaminar por aquilo que se deseja tratar. Também é fácil se contaminar pelos sonhos, pelos sorrisos, pelo carinho, que de uma hora para outra podem desaparecer. E você se percebe sozinho. E vê que, na verdade, não operava a alma de outrem. É você quem está ali, deitado sozinho no centro cirúrgico, ò cirurgião desalmado, é você quem precisa de reparos. Mas o quarto continua sozinho e você não tem a quem gritar. Ou talvez sejam só ilusões... que bobagem, achar-me um cirurgião, achar-me deitado numa cama, quando sou apenas um simples e delirante náufrago, sozinho, se afogando no mar.
Gostei do texto, bem inspirado.
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