Era uma vez uma menina chamada Josefina. Seus cabelos eram loiros encaracolados, o rostinho rechonchudo, um pouquinho empoeirado do movimento da cidade. Vivia em uma cidade antiga, perdida em outra era, que hoje só podemos imaginar. Andava por ruas amareladas, por entre feiras camponesas. Vivia em uma pequena casa e, ainda jovem, trabalhava para um senhor, dono de uma livraria. Josefina perambulava alegremente pelas ruas vendendo livros velhos, de páginas amarelas, que combinavam com aquelas ruas, com aquele tempo antigo, aquele mundo amarelado. O chão das cidades era de terra e tudo ficava um tanto empoeirado com o movimento das pessoas.
Era comum ver outras crianças trabalhando naqueles tempos. Lá está Luís, varrendo a entrada da taverna de seu pai. Cá, Amália carrega um cesto de flores e passa cumprimentando alegremente Josefina. Mais adiante, vemos a barraca de frutas onde Carolina ajuda a mãe. Subitamente, Gregório passa correndo atrás de Martin, sinuosos por entre as pessoas, que se queixam porque os meninos esbarram em tudo conforme passam. Muitas crianças havia na cidade.
A família de Josefina era muito pobre. Faltava bastante coisa para comer em casa. Josefina não conhecia o seu pai e sua mãe não falava sobre ele. Não tinham parentes próximos. As pessoas com quem mais se relacionavam era os próprios moradores locais, com quem Josefina e a mãe se encontravam ao visitar o centro da cidade ou ao ir à igreja.
A cidadezinha de Josefina recebia muitos viajantes que buscavam os produtos vendidos na feira, no centro. Era a estes que a menina tentava vender os livros que trazia na pesada cesta.
Josefina gostava muito de livros. Sempre rondava a livraria da cidade. Para ela, não havia lugar mais grandioso no mundo. Desde muito pequena, gostava de ir lá para olhar. Olhar aquelas prateleiras repletas de livros, todos formando um bloco só, impecavelmente enfileirados. Olhar o movimento das pessoas, folheando os livros, comentando os assuntos. Algumas pessoas chegavam trazendo cópias de papel para o dono da livraria. E Josefina ficava ali, maravilhada. Todo o restante do mundo era tão óbvio: a barraca de frutas; a taverna onde os homens iam beber; as crianças jogando pedras no rio ou correndo atrás dos gatos ou atrás umas das outras. Ali Josefina sentia algo mágico. Algo indecifrável. O que havia de tão interessante dentro daqueles pedaços de papel? Por que alguns eram grandes, outros pequenos, alguns com capas feias, outros muito coloridos? A mãe de Josefina não sabia ler. Não tinham livros em casa. As demais crianças também não sabiam, exceto Quésio, o filho do prefeito. Mas poucas vezes ele brincava com as outras crianças, pois ficava a maior parte do tempo dentro da mansão do prefeito. As crianças o viam brincando com os empregados de seu pai no grande jardim de casa, mas raramente o menino se aproximava da grade, verificava se ninguém estava olhando, pulava o muro e ia brincar com os outros garotos.
Certa vez, Josefina levou um livro escondido da livraria para Quésio ler para ela. O menino falou que não leria, pois detestava livros. Seu pai o obrigava a ter aulas de leitura com o padre, mas ele detestava e fugia das aulas sempre que podia. Josefina ficou triste, pois aquele livro era tão bonito, e ela ficou a imaginar o que haveria ali dentro. Pensava naquilo que era dito na igreja e imaginou se conteria anjos, carneirinhos, pastores. Lembrava-se também das histórias que ouvia de sua mãe, sobre fadas e dragões. Imaginou o rei, distante, sentado em seu trono de ouro, como dizem. Pelo que falam, ele é um tanto gordinho, porque come demais. E como o rei come! Uma vez esteve na cidade um funcionário da corte e disse que era comum comerem um leitão em todo jantar. Josefina ficava com pena dos porquinhos, assim como das vacas e dos frangos. Ali em sua cidade apenas comiam animais quando a cidade estava em festa, pois eram muito caros. Normalmente os animais eram vendidos para os viajantes, e a menina se entristecia ao vê-los, pois sabia que eram levados para serem comidos por homens gulosos. Quem sabe pelo próprio rei! Ela gostava dos animais. Eles lhe faziam companhia quando ela se sentia sozinha, e ela lhes contava as histórias que imaginava nos livros.
Mas chegou o momento em que a menina já era forte o bastante para ajudar a mãe além das tarefas de casa. Um belo dia o dono da livraria apareceu em sua casa e falou:
- Essa menina está sempre zanzando na livraria. Eu tenho uma idéia para ela, se a senhora concordar...
E foi assim que Josefina foi contratada. Durante o dia, ela carregava um cesto com livros e andava pela cidade oferecendo-os aos viajantes. Não pagava muito, mas o dono da livraria deixava Josefina ficar com alguns livros. Algumas vezes ele lhe falava sobre um ou outro, para que ela pudesse impressionar os clientes, mas o homem não tinha muita paciência. Ele não gostava tanto de livros, mas sim de vender livros. Para falar a verdade, se pudesse, Josefina jamais venderia os livros. Ficaria com todos para si.
A menina passou, então, a folhear os livros que levava para casa. Alguns eram só de palavras, outros tinham algumas poucas figuras no meio dos textos, e outros eram praticamente só de desenhos, com poucas palavras embaixo. Josefina folheava e folheava. Inventava histórias sem fim. Imaginava-se escrevendo aqueles livros e, a cada página virada, pensava num acontecimento mais interessante, mais surpreendente a cada esquina.
Nos livros mais coloridos, imaginava histórias alegres, de príncipes e de princesas. Imaginava uma princesa, como si, sozinha, num castelo, acompanhada apenas de sonhos. E imaginava um príncipe, distante. Ele seria belo e bravo. Um guerreiro destemido à procura de uma donzela à salvar. Mas a princesa, pobrezinha, nada podia fazer para chamar a atenção do seu príncipe encantado. Permanecia presa. Seus sonhos viajavam, chegavam até ele, mas o príncipe não os conseguia ouvir. Perseguia dragões, matava gigantes, salvava vilarejos, mas nunca ouvia o choro abafado da princesa, abandonada no alto da torre, sozinha, com seus sonhos e lágrimas. O príncipe buscava aventuras, descobrir novas terras, derrotar inimigos. Não conseguia ver a pobre princeza em meio a tantas emoções. E a princesa permanecia ali. Assistia só de longe seu príncipe encantado, sem poder jamais tocá-lo. Afinal, esse príncipe encantado era mesmo um bocó, só pensava em aventuras bobas e não via que a princezinha estava triste. Por fim ela ficaria ali, conformada. Talvez até feliz por não ter sido encontrada por esse príncipe boboca. Sobre o que conversariam? Ele falaria de matar dragões, e ela de sonhos. Ele sairia para aventuras com seus amigos, iriam caçar animais, matar inimigos, e comemorar bebendo na taverna. Talvez fosse melhor mesmo para a princesa seguir sozinha. Josefina já havia visto os homens que bebem na taverna e não gostava do jeito deles. Ficavam estranhos, vermelhos, falavam coisas feias e tinham um cheiro ruim. A princesa certamente não gostaria do cheio do príncipe bêbado, ia querer que ele ficasse longe. Afinal por que uma princesa precisa ficar esperando por um príncipe para ser salva, não é mesmo? A princesa tinha seus sonhos, sua imaginação, e mesmo trancada naquela torre fria, invisível, sem jamais ser ouvida pelo príncipe encantado, não deixava de ser uma princesa.
Mesmo que ele não gostasse, Josefina levava para Quésio alguns livros e perguntava sobre o significado das palavras. Ou então perguntava que som tinham, perguntava o que estava escrito sob uma certa figura, e assim ia inquirindo o menino. Muitas vezes ele não respondia, noutras se gabava de ter vários livros em casa. Tinha mais livros que a livraria toda, e livros mais bonitos, de capas douradas, com figuras exuberantes, com enfeites de toda sorte. Josefina adorava quando o menino falava sobre as riquezas de sua casa, pois aí ela aproveitava para perguntar mais e mais, e ele, querendo mostrar o quanto sua família é abastada, não poupava detalhes. Contudo, a alegria de Josefina durava pouco e logo o menino se entediava e saía correndo atrás dos outros moleques; ou corria de algum empregado que percebia que ele havia fugido da casa e vinha de sopetão atrás dele.
Voltando para casa, Josefina continuava a folhear, a imaginar, mas agora também aos poucos tentava decifrar o que diziam aquelas palavras. Juntava o som de umas aqui, lembrava o significado de outras ali, e de repente as coisas começavam a fazer sentido. Josefina já conseguia entender o que diziam certas palavras; depois certas frases; depois parágrafos! A menina estava radiante. Em poucos meses trabalhando na livraria ela já conseguia ler várias páginas. E adorava! Os livros eram mesmo fascinantes. Falavam de coisas que ela jamais havia ouvido falar; descreviam lugares lindos; contavam belas histórias; narravam acontecimentos; discutiam questões; falavam de política, de sociedade, do campo, das pessoas, dos animais.
Josefina lia e lia. A princípio sua mãe ficou preocupada, afinal que tanto que essa menina lê? De que vai servir a ela esse monte de leitura, senão para deixar os olhos tortos? Leitura é coisa de gente rica, de quem não precisa se cansar no dia a dia para trazer comida para casa. E, afinal, o que uma criança iria entender daquele monte de livro?
O dono da livraria, porém, acalmou a mãe de Josefina. Aquilo poderia ser bom para os negócios. Imagine só, uma criança jovem e pobre, mas assídua na leitura? Certamente impressionaria seus clientes.
Agora, quando Josefina oferecia os livros, fazia questão de comentá-los. Em pouco tempo, leu inúmeros livros e praticamente não havia uma única obra sobre a qual ela nada pudesse falar.
Um dia ela estava contando para um jovem caixeiro-viajante a história de um livro, quando outro homem, em nobres trajes, se aproximou. Ouvindo a história contada pela menina, o homem exclamou:
- Vejam só, uma pequena amante de livros. Mocinha, a quem queres enganar? É claro que o teu patrão te fizeste decorar este pequeno texto. Onde já se viu, uma camponesa analfabeta crítica literária?
E o homem se pôs a rir, dirigindo-se aos outros homens que o acompanhavam, que fizeram o mesmo.
- Não senhor, eu não sou analfabeta. Aprendi a ler e estou contanto a impressão que tive do livro. - respondeu, humildemente, a menina.
- Mas é claro que és analfabeta. Onde uma menina como tu poderia aprender a ler? E logo percebe-se que tudo que falaste está em desacordo com o livro.
- Meu senhor, eu li esse livro diversas vezes. Tem certeza que não é o senhor que está enganado sobre ele?
Josefina não ouviu resposta. Uma bofetada lhe acertou o rosto. Um dos acompanhantes do homem lhe desferiu o golpe e acrescentou:
- Sua imunda, como pretendes falar assim com o visconde? Queres ir presa? Ou preferes apanhar ainda mais?
Afinal, não seria a última vez que Josefina apanharia...
Josefina encontra-se trancada em uma prisão. Por seu rosto corre sangue. Todo seu corpo dói e ela mal consegue se erguer do chão frio da cela. Vários anos se passaram desde a primeira vez que a menina foi esbofeteada na praça de sua cidade, mas aquele dia jamais saiu de sua mente. Naquele dia a inocência de Josefina começou a morrer. Ela voltou para casa chorando. O dono da livraria, percebendo o movimento estranho, se aproximou às pressas, à tempo de pedir mil desculpas ao visconde pela impetulância de sua pequena funcionária. Garantiu que aquilo jamais se repetiria e despediu a menina, ordenando, ainda, que ela devolvesse todos os livros que havia levado da livraria, com a ameaça de ser acusada de ladra.
A menina chegou em casa, os olhos inundados por lágrimas, que apenas permitiam ver a bela fileira de livros, perfeitamente organizados a um canto. Ela correu em direção a eles e se prostou no chão, ao lado, chorando incessantemente. Seus sonhos seriam levados para longe. E aquele estúpido príncipe continua lá, longe, bebendo e brincando de aventuras, sem perceber que a princeza está triste, amedrontada, precisando de sua ajuda.
Mas a ajuda nunca veio...
Josefina foi aprendendo que não havia príncipe para ser esperado; não havia herói cavalgando por este mundo, lutando contra dragões e salvando pessoas. Havia apenas mercadores. De frutas, de animais, de livros, de sonhos... se preocupavam em vender flores, não cultivá-las; vender livros, sem lê-los; magoar pessoas, sem entendê-las.
E assim, hoje, presa numa cela fria, enfiada em trapos e deitada sobre pedras tortas, embebidas no seu próprio sangue, Josefina não esperava que alguém aparecesse para salvá-la. Estava só. E só ficaria.
CONTINUA...
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