sexta-feira, 26 de julho de 2013

Carta pra Matilde

Querida Matilde,

já faz um tempo que a gente não se vê. É a primeira vez que resolvo escrever diretamente pra você. Não sei nem se você vai chegar a ler minha carta, mas também nem precisava colocar seu nome nela, porque você vai saber que ela é pra você, por causa das coisas que vou escrevê nela.

Eu pensei muito melhor em nóis, Matilde. Sobre as coisas que você falava pra mim e percebi que eu era muito bobo, Matilde, porque eu cismava de ouvir as bobeiras que você falava.

Mas é que você falava com muita confiança, Matilde, e aí eu ficava impressionado. Pensava assim: "Nossa, a Matilde sabe mesmo do que está falando. E eu vinha fazendo errado esse tempo todo. Vê se pode!".

E aí você me fazia acreditar que eu não sabia nada, e eu era bobo de acreditar, Matilde.

Só que aí veio o dia de dar remédio pra nossa gata, a Francisquinha. Você lembra, Matilde? Você pegou o remédio pra dar, dizendo que sabia certinho como fazer. Colocou a seringa na boca da gatinha e apertou tudo de uma vez, segurando a boca dela depois.

Não teve jeito. A bichinha engasgou e cuspiu tudo fora.

Foi aí que eu percebi de vez o que já suspeitava: que você não sabia muito bem das coisas, né Matilde, mesmo fingindo que sabia de tudo.

Eu já tinha dado muito remédio pra bicho e sabia que aquilo ali estava errado. Você, brava como sempre, falou que era assim que sua avó fazia, que tinha que aproveitar e espirrar tudo de uma vez, e falou que, se eu achava que sabia fazer melhor, fizesse por mim mesmo.

E aí fui lá e fiz. Devagarzinho fui espirrando o remédio, com calma, e a gatinha tomou tudo. Nem precisava de vó pra me falar que era assim que devia fazer. A gente sabe, é só prestar atenção, se você tenta engolir coisa de mais, não passa da garganta, engasta, e a gente cospe de volta. Com o bicho não é diferente. Será que você não conseguia perceber?

Mas aí fui pensando nessas coisas. Nessa época eu achava mesmo que você sabia de tudo. Tinha uma opinião sobre tudo, criticava tudo que eu fazia, falava com segurança, apontava defeito nas coisas e parecia que nada que fosse feito bastava pra você.

Isso ficou na minha cabeça. Você sabe como eu sou, quando cismo com uma coisa é difícil de tirar da cabeça.

Na época eu tinha perdido toda minha confiança. Afinal, nada que eu fazia estava bom pra você. Reclamava do jeito que eu varria o chão, da massagem que você pedia pra eu fazer, dizia que meus beijos eram estranhos, que até na hora de fazer compras eu era enrolado. Falava que não via graça nos textos que escrevia, que eu cantava mal e dançava ainda pior. Que a comida que eu fazia não era boa e até que eu era preguiçoso.

E fiquei mesmo preguiçoso. Não tinha vontade de fazer nada, porque sabia que você ia falar mal. E ninguém quer ficar vendo seus erros e defeitos sendo apontados todo dia. Todo mundo tem defeito e, como você gostava de mostrar, eu tinha um monte deles. Na verdade, era difícil achar algo que você não considerasse defeituoso.

E aí você ainda queria saber porque eu andava tão triste...

Mas fiquei com isso na cabeça...

Depois que você foi embora eu voltei muito triste e com medo. Como uma pessoa que não sabia fazer nada direito poderia saber se virar sem você por perto?

Só que aí as coisas começaram a ser muito diferentes, Matilde.

Quando o diretor Igor veio falar comigo, eu jurava que ele ia brigar porque eu estava faltando muito. Mas foi bem o contrário. Ele elogiou e ainda me promoveu. E isso se repetiu muitas vezes. Muita gente vinha elogiar as coisas que eu fazia. Eu fiquei impressionado, porque desde que eu vivia com você, fazia muito tempo que tinha me desacostumado com elogios e palavras agradáveis.

Mas eu juro pra você, Matilde, que eu acreditava tanto nas coisas que você falava (porque você falava com tanta confiança) que eu até pensava que esse povo devia ser muito besta de não ver que tudo que eu fazia era muito ruim.

Só que era muita gente. Você não sabe, Matilde. Na primeira semana depois que você foi embora eu conheci um senhor, falei das coisas que eu gostava de estudar, e ele veio me chamar pra estudar com ele. Falou pra eu largar o lugar onde eu tava, que com ele eu ia ganhar mais dinheiro. E era um senhor bem sabido. Seria possível que você soubesse mais que essa gente toda, Matilde? Mas você não sabia nem dar remédio pra gatinha.

Aí então, meio por acaso, aconteceu mais uma coisa. Eu com essas coisas na cabeça e uma moça pediu minha ajuda pra fazer comida. Eu fui e estava lá amassando o alho, colocando sal, igual você me ensinou. E aí, de curiosidade mesmo, perguntei porque a gente precisava botar sal no alho pra amassar. Lembra que eu tinha te perguntado? E você falou pra mim: "Ah João, não sei, mas minha avó ensinou a fazer assim, que o tempero pega melhor". Mas a moça me explicou. Não era nada disso. Era só que o alho solta água no sal (uma tal de osmose) e aí os dois juntos viram uma pasta, que é mais fácil de amassar, senão os pedaços de alho seco ficam pulando quando você soca eles.

Pensei nisso e lembrei da história da Francisquinha. E lembrei que você nunca sabia explicar direito as coisas para mim. Eu achava que era porque você não queria perder tempo comigo, porque achava que eu não ia entender. Mas comecei a pensar que era você que não sabia. Que você só agia como se soubesse tudo, mas que no fundo era muito boba.

E fiquei um bom tempo brincando com isso. Ia lembrando de cada vez mais situações em que você fazia essas coisas. Lembrei de vários casos e a cada dia conseguia lembrar um novo. Algumas vezes lembrava de coisas bobas de casa, como foi o caso do alho. Em outras lembrava de coisas mais difíceis. Você até criticava a ciência, dizia que duvidava das descobertas e dos métodos dos cientistas, mas não questionava nem o que sua avó dizia, Matilde! E aí eu lembrava que, na verdade, não tinha muitas coisas que você fazia que eu podia dizer que eram bem feitas. Acontece que eu gostava muito de você, e aí não importava se você era boa ou não no que fazia. Desculpe a brincadeira, Matilde, mas a única coisa boa que eu acho que você fazia era reclamar. O bom é que hoje eu já acho graça quando lembro.

A verdade é que pensei bastante e comecei a ver que você era muito boba, Matilde. Desde quando comecei a fazer as coisas do meu jeito, tudo voltou a dar certo, como era antes de eu te conhecer. Não sei porque você tentava mostrar que sabia das coisas, não sei porque você reclamava tanto de mim. Talvez você tivesse medo de eu descobrir que, na verdade, era você que não sabia de nada. Que eu era bem melhor. Acho que você sempre foi bem medrosa. Era por isso que durante o dia andava toda empinada com aquela cara de brava, mas à noite chorava baixinho. Você acha que eu não ouvia, Matilde? Eu ouvia, mas tinha medo de chegar perto e você brigar.

Hoje eu tenho pena de você. Acho que não deveria ter, mas o que eu posso fazer? Tenho pena porque sei que você sofre. Sei que você acha que tudo no mundo está errado e que as coisas não acontecem do seu jeito. Mas são bobeiras da sua cabeça, você não vê? Tenho pena, porque eu deixei de acreditar nas suas bobeiras, Matilde. Mas acho que você ainda não.

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