terça-feira, 24 de maio de 2011

Era uma vez...

Alguns anos atrás passei por esta mesma cidade por onde agora perambulo. Parece tudo tão diferente, enquanto ao mesmo tempo igual. É aquela estranha sensação de se visitar um lugar conhecido noutros tempos, cuja lembrança esvaía-se tanto ao ponto de parecer que não passava disso, lembrança. E quando retornamos, percebemos que aquilo existiu de verdade e continua a existir, tendo uma vida autônoma e concreta nesses anos em que, para nós, não passou de uma velha lembrança empoeirada a ser corroída pelo tempo. Contudo, mais que a sensação de estranheza, o que me chamava atenção agora era uma bela mulher, uma desconhecida familiar, que um dia fora alvo de minhas atentas observações e conjecturas.

Tudo se passou quando, nesse passado tão distante e agora tão próximo, estava eu lotado nessa cidade para fins de trabalho. A natureza dessa estadia é o que menos interessa, uma vez que há muito larguei tal carreira, o que pode ser assunto para outro momento. Mas o fato é que estava eu por essa pacata cidade, aproveitando o ar provinciano e a calma que pairava sobre os dias e noites, enquanto me deliciava a sentar em um dos bancos da pracinha do centro, observando os transeuntes, as famílias, os pássaros, as flores...

Foi nessa condição que conheci a moça de quem falo e foi aí que conheci também um rapaz que a encontrava religiosamente naquele local e horário. Nos meus devaneios de observação, imaginava o que conversavam, o que sentiam. O que pensava um do outro? Quais planos faziam? Quais palavras de amor trocavam? E acaba que por um momento eu usurpava seu enlace para mim e vivia aquilo, sentia aquilo. Estava eu ali com aquela bela moça, fazendo planos de fugir da cidade, ou de constituir uma grande família, ou seja lá o que for.

Porém os dias passavam, eu ficava mais atento aos detalhes e acabava por me inteirar melhor da situação daqueles dois. Os encontros eram apressados, as carícias trocadas com intensidade, o olhar bastante expressivo cortando o ar e encontrando com os olhos opostos. Foi quando um dia o rapaz não apareceu. Não houve beijos enlouquecidos, carícias desconcertantes ou planos futuros. Apenas choro irrefreável que brotava dos olhos daquela bela criatura, que olhava ocasionalmente para os lados à procura de alguém, enxugava os olhos e baixava o semblante, chorando baixinho, como que lamentando para si mesma algum acontecimento terrível. Porém não era indiscreta. Não teria eu jamais percebido seu incontido choro não fosse o hábito já consolidado de a observar. Chorava sem parar, mas chorava sozinha, chorava para si só, que é para nós mesmos, e apenas nós, que faz sentido o choro da perda de quem se ama. Ninguém mais consegue compreender, sem amar. E ninguém mais percebia seu choro incansável, a não ser eu, que anonimanente havia participado da história que levava até aquela ocasião, que sabia quão forte era o desejo com que os dois apaixonados se entregavam ao amor, que sabia que havia algo de muito terrível no choro derramado por aquela bela moça de pele alva e cabelos loiros, de jeito humilde, que apenas lhe acentuava a beleza.

Nos dias seguintes continuaram as famílias a levar seus filhos, brincar com seus cães, pessoas corriam em torno da praça, as flores floresciam, os pássaros cantavam e o Sol brilhava intrépido no céu azul. Mas para alguém a vida não continuava. Assim como imaginava e partilhava as venturas amorosas daquele casal, passei a ponderar quais rumos suas vidas agora haviam tomado, quais amarguras eram aquelas por que agora passavam, e vivia isso com a mesma intensidade com que outrora vivera seu amor cujo mistério e segredo era quebrado apenas pela minha observação ociosa e habitual.

Os dias se tornaram meses, o Sol brilhante deu lugar ao inverno cinza e meu lar deixou de ser aquela cidade, meus ideais e objetivos se tornaram outros, havia necessidade de me mover. Mas agora, de volta à cidade, surpreso e feliz por encontrar alguém que não é de todo estranho e sobre cuja sorte tanto especulei, senti uma estranha sensação, uma felicidade, como quem vê um amigo há muito desaparecido, ou relembra um caso, contado por alguém, e que já mais nem se lembrava de ter acontecido. Queria agora saber o que havia sucedido com aquela mulher, qual fora o desenlace dos acontecimentos. Porém, para minha surpresa, era ela quem vinha em minha direção e me dirigia a palavra.

Perguntou se eu havia visto seu filho e descreveu o menino. Foi uma sensação muito estranha essa aproximação inopinada, como se toda aquela imparcialidade de tantos anos fosse repentinamente destruída. Era como se a moça do tempo da TV resolvesse me perguntar se acho que vai chover. Respondi que não, mas fiquei satisfeito com a sua voz. Era exatamente como eu imaginava. Ela seguiu na direção de outras pessoas, repetindo a mesma pergunta, eu presumo.

Logo em seguida vi passar um outro homem, que nunca tinha visto antes, com o menino descrito, indo em direção à mulher e anunciando aliviado que havia encontrado a criança. Aproximando-se, o casal se beijou, depois do que a mulher passou a ralhar com o menino reencontrado. Devo confessar que me senti decepcionado. Por tanto tempo imaginei o que havia acontecido àquela moça, quais tormentas por que passara, quais loucuras de amor cometera, como seria difícil para ela viver sem seu amado. Mas posso saber que se o amor só é compreendido por quem ama, para quem o inveja é muito mais forte. Se aquela moça havia esquecido o amor que um dia viveu, isso eu não conseguia fazer, e sonhei bom tempo da minha vida com um amor verdadeiro e intenso como aquele, que agora se desfazia em meio à desilusão. Afinal, de que vale o amor, se impreterivelmente um dia tem seu fim? Ou mais ainda, de que vale, se conseguimos suportar tão bem esse fim?

Mas enquanto ia embora, não pude deixar de notar, num bar de esquina de péssimo nível um homem, bastante sujo e bêbado ser colocado para fora a pontapés. Era ele, o rapaz com quem a moça costumava se encontrar. Apressei-me por ir embora, não queria saber o que havia acontecido com ele. Mas se as esperanças de um amor verdadeiro se esvaem, pelo menos na imaginação pode permanecer vivo. E assim, corri para mantê-lo.

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