Era uma vez a época em que as meninas lutavam para manter o conteúdo de seus diários escondido dos seus pais preocupados, dos irmãos bisbilhoteiros e de quem mais não fizesse parte do seleto grupo de merecedores dos segredos mais nobres e modestos guardados naquelas páginas infantis. Conheci várias que trocavam papéis de carta, imitavam apresentadoras da TV e conversavam sobre meninos ao mesmo tempo em que brincavam de bonecas, disputando calorosamente aqueles que seriam os pais de seus filhos. Nessa época havia cadernos de perguntas, onde as pessoas respondiam supostamente confessando seus segredos mais íntimos, mas que na verdade não passava de perguntas e respostas inocentes. Mas todos se divertiam com isso. Conheci muitas meninas que fingiam fazer comida e adoravam quando realmente conseguiam realizar alguma receita. Eram meninas que não sabiam o significados de palavras como “masturbação” e “orgasmo”, as quais parecem que já nascem nas línguas dos bebês hoje em dia. E ficavam vermelhas ao conversar com os meninos, principalmente quando ouviam algumas das bobagens que sempre rondam as bocas desses bobocas do sexo masculino.
Jamais me permitiria realizar julgamentos de valores, mas um pouco de nostalgia posso conceder-me. Hoje não vejo mais os diários “classified” ou “top secret”, como antigamente. Ao contrário, todas as meninas expõem seu dia a dia em blogs, fotologs, que, mesmo já saindo de moda – e por isso eu resolvi escrever um agora – estão sendo apenas substituídos pelos seus análogos twiters e compania. E não só expõem a vida, como sempre uma vida tão perfeita de dar inveja. Não podemos mais ter problemas, mas isso é assunto pra outro momento. Até programa de TV hoje passa na internet, muitos deles sem nem sequer passar na TV! Também não vejo mais as meninas ficarem vermelhas, pelo contrário, são elas que ocasionalmente assim me deixam, especialmente as mais novas, ao soltarem coisas que eu jamais imaginava ouvir de alguém com tão pouca experiência de vida. Mas já estou me acostumando. Está certo, sei que estou parecendo um velho chato, mas não é isso, não sou velho e talvez não seja muito chato. Não tenho nada contra as mudanças, apenas elas me parecem estranhas. Mesmo sendo ainda jovem, tudo mudou tanto, o mundo não é mais o mesmo. Também pudera, 10 anos atrás ainda não tínhamos noção do que era google, internet era apenas um embrião no Brasil, celular, para poucos e, por incrível que pareça, micareta era um carnaval fora de época que acontecia algumas semanas antes do verdadeiro e não era uma festa de pegação. Impressionante não? Também não tenho nada contra micaretas como são hoje, pelo contrário, até gosto; mas poderia ser um evento a mais, sem que retirasse o espaço daqueles anteriores.
Está aí! Descobri a fonte de minha estranheza. É porque as novidades não apenas surgem e se somam, porém substituem e eliminam outras coisas que antes delas existiam e que não eram de todo ruins. Parece que temos uma certa obrigação com o que é novo, de modo que, sempre que a novidade surge, o sapato velho tem que ir pro lixo. Mesmo que seja ele que se encaixa direitinho no seu pé, confortavelmente amaciado e moldado por tantos anos de convivência. Lembro-me dos poucos carnavais que passei na minha infância ao lado de meu pai, numa época em que carnaval era também programa para criança e envolvia serpentinas, confetes e por aí vai. Tá certo que já está na moda novamente, há algum tempo, o antigo lança-perfume, mas essa é outra história. No último carnaval ao qual fui com meu sobrinho, parecia que ele era a única criança do local. Claro que adulto também pode se divertir, mas onde sobra lugar para as crianças? E assim, tudo do passado é apressadamente taxado de antiquado – e como hoje tudo é feito às pressas – e, sob o jugo do moderno, o arcaico é enterrado junto com as gerações que vão morrendo. Substituídos estão os modelos obsoletos, temos até uma filosofia pós-moderna, aparelhos surreais que fazem tudo por nós e uma mobilização de recursos astronômicos para as pessoas tentarem se comunicar e parecer cada vez mais super-poderosas.
Hoje parece que brincadeira é coisa de adulto. Criança tem que ser séria, se vestir como adulto, falar sobre orgasmo e se comportar, não podendo ultrapassar os limites do playground, se tiver sorte, ou os muros de sua casa/apartamento, se não tiver tanta. Trocar papel de carta, nem pensar; imitar apresentadoras de TV, menos, é pagar um mico danado! Essas coisas são coisas de criança, e criança alguma quer parecer criança, quer parecer adulto. Adulto pode ser criança, mas criança tem que se comportar como adulto! Eles não estão vendo que os adultos fazem o que podem para se comportar como crianças, mas não as de hoje, aquelas de ontem, que brincavam, se divertiam e não ligavam pra nada. Só que pra isso os “tios” precisam de alguma ajudinha e é por esse motivo que os vendedores de bebidas faturam alto, sem contar aqueles que vendem outras coisas, como aqueles que prestam reverência aos tempos antigos, vendendo os frascos de lança, que agora são escondidos com tanto cuidado quanto os diários das mocinhas de antigamente.
Entrou, assim, em extinção o passado em função do novo. Nas faculdades é cada vez mais moda a porcaria do “Data show”, um projetor que passa um monte de figuras e textos com duas finalidades básicas: 1) poupar quem o utiliza de ter vasto domínio do que vai falar, pois precisa apenas saber ler para ler para o público, o qual, espera-se, poderia muito bem ler sozinho; e 2) poupar esse público de precisar ser capaz de imaginar as informações passadas e compreender a linguagem verbal, pois logo após um texto vem um monte de figurinhas coloridinhas e bonitinhas para explicar o que significavam as palavras, como se estivessem escritas em um dialeto raro, antigo e indecifrável de sânscrito. Mas a novidade que mais me comove são os “fast foods”, que nem são tão novidade assim. A novidade está na forma como vem sendo usado. Até um tempo atrás, passar no Bob’s ou no McDonalds era por si só um evento, mas que complementava um dia especial, em que íamos ao cinema, ao zoológico, sempre em família ou com amigos. Aí, ao fim das atividades, para matar a fome e continuar no clima de festa, seguíamos para um “fast food”, onde um monte de cores à volta e a enorme possibilidade de gulodices se uniam à permissão de infringir a dieta maternal de verduras e legumes, completando a perfeição do dia. Hoje são apenas mais um tipo de restaurante e o preferido, por servir rapidamente, possibilitando engolir logo a comida e correr para segurar o pouco tempo que ainda resta à humanidade. Os clérigos interpretaram de maneira errada os anúncios dos profetas. O fim dos tempos não é o fim do mundo. O fim dos tempos é, justamente, o fim dos tempos, do tempo que se dispunha para as conversas durante e após as refeições, para contemplar uma paisagem, para brincar com os animais, para fazer companhia e ajudar à sua mãe enquanto ela lava roupa. Hoje o tempo é uma relíquia das mais raras. Digam sinceramente, quem pode afirmar que tem tempo de sobra?
Talvez resida aí o porquê de os adultos se juntarem em uma data específica para se comportarem como criança. Porque não tem mais tempo para se divertirem e talvez não tenham tido tempo de ser crianças, como as crianças de hoje não estão tendo. Começo a imaginar que eu devo ser grato por ter tido uma infância pelo menos um pouco infantil. Ser criança, trocar papéis de carta e escrever em diários é perda de tempo, é mais importante se preparar para o vestibular, para namorar, enfim, para ser adulto. Pois os adultos são espertos: trabalham duro, espremendo ao máximo seu tempo, juntam dinheiro, organizam-se e esperam ansiosamente por uma data, quando, finalmente, poderão agir como crianças novamente. Pena que logo depois volta a segunda-feira e é preciso dar mais duro para pagar o alto preço de uma infância usurpada.
Mas a nossa geração dá um jeito em tudo isso, porque somos muito espertos. Chegou a época da proibição da tristeza e dos problemas. Está sozinho? A internet resolve seu problema, existem vários sites de relacionamento, você ainda pode conversar pelo msn, colocar um blog ou fotolog no ar para compartilhar seus momentos de felicidade ou brincar no twiter. Relacionamento pessoal? Isso é coisa do passado. Mas está triste? Prozac resolve! Se ele não der certo, uma adição de lítio, mais um dose de haloperidol e você está novinho em folha. Só não esqueça do lexotan para dormir direitinho e esquecer dos seus problemas, pois amanhã você tem que brilhar novamente. Mas lhe falta brilho? Basta um bom banho de loja, com uns tênis especiais e roupas fantásticas, com os quais você será um arraso entre as outras milhares de pessoas que se vestem do mesmo jeito para ir para as festas. Ah, e para não ser preconceituoso, não esqueçamos que se você quer dizer que tem personalidade, então vá para umas lojas que vendem só coisas pretas e roxas, gaste uma baba lá, depois baixe mp3 de bandas totalmente desconhecidas e, pronto, temos um intelectual alternativo pronto, sem precisar abrir um livro para isso! Mas não esqueça de criticar todos que tem um gosto diferente do seu! E, para finalizar, se a fórmula de um intelectual é apenas ouvir músicas e bandas diferentes e desconhecidas, bem como saber de tudo que se passa na MTV, então pra que termos trabalho tentando aprender alguma coisa? Deixa que o tal do “Data show” faça todo o trabalho por você!
Isso tudo, porque está obsoleta a época em que as pessoas conviviam. Hoje elas só se esbarram. E não precisando mais convivermos uns com os outros, não aprendemos que os seres humanos são essencialmente diferentes e problemáticos, e não aprendemos a tolerância com quem tem gostos e opiniões diferentes, assim como não aprendemos a conviver com nossas próprias falhas. Por isso vemos as pessoas se juntarem em grupos cujos integrantes são control-c/control-v uns dos outros. Assim fica mais fácil de viver ouvindo só opiniões favoráveis. Fica mais fácil viver sem precisar ver que temos problemas e que, às vezes, ficamos tristes e choramos, e que outras pessoas também fazem isso. E como não convivemos, não aprendemos a respeitar os sentimentos alheios, ficamos insensíveis ao sofrimento. Apenas esbarramos e cada qual, em sua individualidade, apenas se preocupa com seus próprios problemas. Vemos, desse modo, cada vez mais médicos despreocupados com seus pacientes, advogados corruptos e gananciosos, recepcionistas indiferentes. Porém isto não é novidade, devo admitir, mas uma realidade em plena expansão. Sempre houve ao longo da história os famosos gatunos, espertalhões que tentavam sempre levar vantagem e que poderiam deixar você com os bolsos mais leves após um encontro. No entanto, a diferença é que antigamente não se sabia quais das pessoas com quem nos encontrávamos eram esses aproveitadores, enquanto que hoje é difícil encontrar uma pessoa que não seja. Nem todos irão lhe roubar descaradamente, mas raro será encontrar alguém que, dada a oportunidade, não pense duas vezes em se aproveitar da situação, não importando as conseqüências de sua vantagem para outras pessoas.
E é tão obrigatório levar sempre vantagem que até as coisas mais medíocres estão sendo disputadas a tapa. Sempre me surpreendo como que as pessoas quase se matam para entrarem antes dos demais nos ônibus, mesmo quando eles estão vazios e tem lugar pra todo mundo. As pessoas simplesmente não podem perder, nada, nunca, nem uma migalha. E assim, se apertam na correria, para aproveitar o tempo ao máximo. Por isso não ser criança, pois é uma perda. É uma perda que, não obstante, faz uma falta danada, mas ninguém tem tempo pra perceber. Assim como a falta de gentileza e civilidade faz falta na hora de pegar um ônibus. Mas ninguém se preocupa, todos precisam vencer cada vez mais, acumular triunfos, pois cada lágrima caída será uma foto a menos para meu fotolog, uma parte de mim que me envergonha e a qual não mais derramo sobre as páginas do amigo diário, mas elimino de minha cabeça, enfiando o mais fundo que posso. Mas não sei eu que, enfiando assim, vai parar no coração. E aos poucos só restam mágoas e a falta do tempo que passou. Quem sabe o prozac funcione e eu corrija erros incorrigíveis. Quem sabe na próxima festa eu recupere a infância que não tive. Quem sabe das milhões de pessoas com quem me relaciono pela grande rede haja uma capaz de realmente sanar minha solidão. Mas, ops, o ônibus já vem, preciso correr pra pegá-lo antes de todos, depois a gente continua.
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