quarta-feira, 7 de março de 2012
A impossibilidade da palavra
É impossível escrever. A literatura é ilusão, engodo, é mentira, desonestidade, é pilantragem. Por isso não posso escrever. Ao menos não sobre o que quero. A escrita não dá conta perfeitamente das idéias. Pode até dar uma vaga noção, com eficácia prática, sobre a organização própria de diversas circunstâncias. Pode nos dar noções espaciais: acima, abaixo, do lado, atrás; temporais: antes, depois, simultaneidade; e das noções espaciais surgem as formas, e as formas compõem objetos, e os objetos se relacionam com outros objetos no espaço e no tempo. Novamente, ficam acima, abaixo, vêm antes, depois ou coexistem em um dado tempo.
Até aí a linguagem cumpre um papel razoavelmente útil e, talvez, até mesmo preciso. Mas nada há de novo por trás disso. A função e limitações da linguagem já foram descritas por Karl Bühler, Ludwig Wittgenstein, entre outros. Não há nada de novo até aqui. E talvez não surja nada de novo adiante, mas apenas um desabafo, que recorre a essa própria traiçoera que é a linguagem, utilizada na forma em que apresenta-se com o máximo garbor: a escrita.
Entretanto, quando falo da falácia conspicuosa dessa vilã implacável não me refiro ao uso estritamente informativo, no qual ela, como mencionado, se mostra razoavelmente competente. Por outro lado, existe uma área que mais nos interessa, mas que nem por isso é-nos mais fácil de adentrar. Descrever o mundo é simples, descrever a nós mesmos é impossível.
Obviamente, no panorama meramente geométrico é fácil descrever um ser humano. Talvez, respondam-me os matemáticos, exista uma equação capaz de delinear em um gráfico as coordenadas de um protótipo da figura humana. Nada há de excepcional aqui, exceto o excesso de tempo que porventura acometeu o responsável pela determinação de tal equação. Porém, nós somos mais que a forma de nossos corpos. Na verdade essa forma talvez seja o aspecto mais irrelevante.
Por muito tempo me questionei sobre o que nos determina. Não quero dizer o que determina quem ou o que somos, qual nosso objetivo, quais nossos paradigmas morais ou culturais. Nada dessa bobagem efêmera. Mas sim o que realmente nos determina, o que tem significado para nós e acaba por nos fazer viver de um modo ou não de outro e, assim, indiretamente, sermos quem somos, termos nossos objetivos peculiares, criar leis morais e protocolos culturais. Afinal, o que é relevante para nossas vidas.
Pode parecer um tanto quanto óbvio, mas antecipo-me dizendo que já alertei ao leitor para que não espere por novidades aqui, sendo que, se uma expressão de decepção tomar seu rosto após a esperada revelação, é mais culpa dele que minha. E, dado o aviso, digo que o que mais importa é o que sentimos. Contudo, mais que o quê sentimos, é como sentimos. A maneira como cada sentimento nos afeta.
Já havia escrito em um texto empoeirado, perdido nas págimas possivelmente amareladas de um caderno que vaga incógnito pelo espaço que nos cerca, minha opinião a respeito de dois grupos de sentimentos. E aqui permito-me uma pausa para esclarecer o significado que, no momento, dou para o termo "sentimento". Não se trata, como no uso corrente, das sensações "sublimes" ou sutis que perfazem a vida humana e são geralmente descritos sob a alcunha de "amizade", "amor", "compaixão", "raiva", etc. De fato, esses significados também se aplicam ao que chamo de sentimento, mas não o esgotam. Muito mais que isso, os sentimentos de que falo dizem respeito a tudo que pode ser sentido, ou seja, qualquer impressão capaz de afetar os nossos sentidos, sejam os cinco famosos sentidos, tato, olfato, paladar, audição e visão, tão bem descritos por Aristóteles, ou os sentidos de mais difícil determinação, quais sejam a sensação de equilíbrio, os sentimentos, conformde citados acima, as diversas sensações, paixões, emoções, afetos, que constantemente inundam nossas vidas. Todos são coisas que sentimos. Indescritíveis. São sentimentos que colorem o quadro de nossa existência.
Não entrando em questões de filosofia mais avançada, mas uma explicação é necessária. Há muito já havia sido estabelecido que tudo que forma nossa existência são essas impressões. Vemos cores, ouvimos sons, e eles se organizam no espaço e no tempo, formando toda a trama de universo que conhecemos. Também nossos sentimentos internos mais simples se organizam, ora formando outros mais complexos, ora dando significados diferentes uns aos outros. E também se relacionando com as impressões externas. Dessa forma, não é de estranhar que à figura de uma pessoa relacionemos a sensação de amor, ou a um cheiro, a uma determinada melodia, uma outra sensação de carinho, ou outro elemento (para uma discussão mais filosoficamente acurada ver David Hume, A Treatise of Human Nature e An Enquiry concerning Human Understanding).
Assim, as impressões simples não podem ser descritas, pois são os elementos fundamentais da nossa experiência. O que descrevemos nada mais é que a maneira como esses elementos se organizam, novamente, no espaço ou no tempo. E dessas formas de organização, uma assaz interessante é a de sucessão temporal, cuja constância nos leva a concluir pela idéia de uma causalidade necessária (novamente ver Hume e, mais ainda, Immanuel Kant para uma discussão sobre a necessidade da idéia de "causa e efeito").
Enfim, nada disso interessa para a questão atual, que é a de desabafar e acusar essa megera que é a linguagem, a escrita, e as palavras, suas cúmplices. Como podem ver, podemos descrever a relação que as impressões mantêm entre si, mas não o que elas são de fato. Já é mais que admitido que não se pode dar a um cego de nascensa a noção da cor azul simplesmente por meio de palavras. Tampouco é possível fazer alguém que jamais experimentou um determinado sabor apenas tentando descrevê-la, a menos, é claro, apelando a outros sabores similares que a pessoa já tenha experimentado e, assim, se não puder fazer uma idéia perfeita do sabor que desejamos comunicar, fará ao menos uma aproximação com algo que já experimentara, mas o que em nada significa que apenas pelas palavras pudemos incitar tal idéia do sabor, uma vez que mais que palavras, foi necessária a experiência prévia com sabores similares para que uma tal aproximação fosse possível. Assim, pode-se concluir que há apenas duas formas de experimentar uma sensação: tendo contato direto com ela, ou seja, vendo a tal cor, ouvindo o som, experimentando um sabor, ou sentindo uma emoção, sentimento ou afeto correspondende. A outra maneira é revivendo na imaginação ou memória a sensação previamente experimentada, ainda que tal modo produza apenas uma idéia sutil da sensação em questão (para Hume, o primeiro caso comporia a "impressão" e o segundo a "imaginação". Nada que nos interesse no momento).
Retornando ao que disse vários parágrafos acima, sendo que todo esse devaneio foi apenas no intuito de explicar o que entendo pelo uso da palavra "sentimento", existem dois grupos em que as coisas que podemos sentir podem ser divididas: os sentimentos informativos e os motivacionais. Na verdade, para ser mais acurado, todos os sentimentos são informativos, inclusive os motivacionais, sendo estes apenas um subconjunto daquele. Os sentimentos informativos nos informam algo. Ou seja, quando percebo uma determinada cor, estou obtendo uma informação: "há ali tal cor", que é válida, se não para um possível mundo real, ao menos para a minha consciência, no sentido de "vejo ali uma cor, que faz parte do mundo que vejo". Sobre a questão invencível de se esse mundo que vejo existe de fato ou não prefiro reconhecer a dúvida inexorável.
Do mesmo modo, quando ouvimos um som, sentimos um cheiro, um sabor, ou mesmo uma sensação mais sutil, como a amizade, por exemplo, podemos dizer "sinto tal coisa". Percebemos que ela compõe esse mundo, que, ao menos para nós mesmos, é real. Porém, dentre essas coisas, algumas possuem um apelo motivacional, isto é, agradáveis ou desagradáveis. Eximindo-me do simplismo comportamentalista, não julgo agradáveis aquelas sensações que nos levam a adotar condutas que as façam ser repetidas. Ao contrário, adotamos tais condutas e buscamos repetir tais sensações devido ao fato de nos serem agradáveis. Quanto ao que é "ser agradável", é algo que, assim como a cor, não pode ser expresso em palavras, mas admito que não será difícil para ninguém fazer uma justa idéia de o que seja algo que cause prazer. Existe uma discussão sobre o que é o prazer em essência, se ele é uma propriedade de uma sensação ou se é por si só uma sensação única. Não pretendo entrar nessa discussão, apenas ponderar que uma mesma sensação pode ser prazerosa ou não, o que nos leva a pensar que o prazer causado por ela é algo independente da sensação. Por exemplo, o prazer de degustar um alimento, como um chocolate, é acompanhado de prazer. Todavia, após fartar-se de chocolate, qualquer pessoa ainda conserva a sensibilidade para tal gosto, de tal modo que facilmente identifica o sabor do chocolate e prontamente diz que o sabor não foi alterado. Porém, o prazer em comê-lo acaba, e a pessoa não mais deseja o alimento antes tão apreciado, e mesmo pode sentir repulsa pelo sabor que antes tanto desejara.
Contudo, não desejo me prolongar nesse assunto. O importante é que, dentre as sensações, algumas nos agradam e outras desagradam, enquanto outras ainda são indiferentes. As primeiras são informativas e motivacionais, as segundas, apenas informativas. Skinner errou ao considerar apenas o ponto de vista do reforço e punição, pois eles dizem respeito apenas às sensações que são também motivacionais, enquanto, de fato, relacionamos a todo tempo todas as sensações, motivacionais ou não. Considerar a perspectiva comportamentalista é, portanto, simplismo. O que não quer dizer que, domadas as suas pretensões infundadas, o que ela diz não seja revestido de uma certa verdade, ou, tendo a verdade como inatingível, ao menos capaz o bastante de descrever aspectos de nossa experiência com precisão suficiente para se tornar útil para nossos interesses.
E nossos interesses nada mais são que buscar prazer e evitar desprazer, como já afirmava Freud. A incompreensão desse tópico advém muito mais da pequenez das mentes que sobre ele refletem que da proposição. Prazer e desprazer fornecem uma gama imensa de possibilidades, muito maior que nossos exemplos corriqueiros podem dar conta. E algumas vezes o prazer ou desprazer podem estar escondidos sob relações complexas. Impressões que, para alguns, seriam apenas informativas, podem, para outros, relacionarem-se de algum modo a outras sensações, que envolvem um aspecto motivacional. E, dessa maneira, é infinita a quantidade de combinações e associações entre idéias e impressões, capazes de infinitas circunstâncias de prazer ou desprazer.
Dentre essas, encontramos a euforia, a honra, a ternura, ou mesmo sensações controversas, o prazer no sofrimento, a manutenção de adversidade, enfim, todos aqueles tópicos sobre os quais os psicólogos tanto se debatem tentando achar uma resposta. E não pretendo ser mais um deles no momento.
O fato é que, retornando à linguagem, ela é impossível. Quando se trata de extrapolar o caráter informativo, ela perde completamente sua precisão e, com ela, seu propósito. Se bem que, ao afirmar isso, estou colocando sobre a linguagem um objetivo que eu mesmo lhe dei, qual seja, o de transmitir algo que queremos transitir. Talvez a linguagem se preste a outros fins diversos, mas quando o intuito é fazer com que alguém sinta algo que você mesmo sente, isso se torna impossíve. Não tanto no que se refere a sentimentos banais, mas em relação a eles também. Ao falar que "estou feliz", consigo transmitir facilmente idéia, mas jamais posso me assegurar da precisão obtida pelo interlocutor no entendimento. Mas essa comunicação serve ao menos para fins práticos, pois meu interlocutor pode associar minha afirmação com uma certa variedade de fenômenos comuns a pessoas que se autodeclaram felizes, de modo a adequar suas escolhas e comportamentos à satisfação de seus interesses, ou seja, obter prazer e evitar desprazer.
Por outro lado, quando tomado por sensações de natureza mais complexa, sequer esse efeito é obtido, e a linguagem se perde completamente. Desintegra-se. Nesse exato momento, não consigo descobrir um único exemplo que mostre de quais sensações estou falando. As palavras me escapam completamente. Assim como descrever a cor azul, é impossível descrever esse sentimento. Tampouco pude descrever a sensação de felicidade, mas ao usá-la empreguei um termo comumente usado e, presumivelmente, correspondente a uma sensação que diversas pessoas já sentiram em suas vidas e associam ao nome de "felicidade". Portanto, mais que descrever a sensação correspondente à palavra, apenas a utilizei, e espero que a familiaridade com o significado leve prontamente o leitor a formular a idéia correspondente. Entretanto, ao tentar comunicar sensações que são menos comuns, ou que talvez apenas uma pequena quantidade de pessoas tenha tido a possibilidade de conhecer, vejo-me debatendo inutilmente com o teclado do computador. E dele não pode sair solução alguma para o meu problema.
Dessa forma, coloca-se o problema dos textos que quero escrever. Mas são textos impossíveis, palavras que não existem e não podem ser ditas. São textos que existem apenas em minha mente, que pulsam junto com meu coração, mas que uma vez derramados sob a forma fria de palavras, perdem seu significado. Tento me aproximar, usar a linguagem que mais se aproxima, explicar os motivos que levaram e os acontecimentos que sucederam, as circunstâncias... mas não. Releio, e no mesmo instante vejo que tudo se perdeu. São apenas palavras. Que serão associadas a infinitos outros significados por cada pessoa que as ler, mas que já perderam por completo o significado que as dei.
Tudo bem, admito que ainda assim essas palavras têm seu valor. Podem desencadear inúmeras sensações, divertir, entusiasmar, entreter, irritar, podem levar por todas as veredas do universo ou por todos os amálgamas de sensações humanas. Porém, acertar exatamente aquela que eu havia planejado é mais difícil que acertar um específico átomo perdido na poeira estelar em alguma galáxia desconhecida no universo infinito. Não! O significado só existe para mim. É incomunicável. Sou mudo, não posso escrever, não posso me comunicar. Preso nas minhas próprias idiossincrasias. Culpa da linguagem, essa ingrata, que nos priva de comunicar aquilo que justamente mais queremos, e nos encarcera em nossa própria existência, sozinhos, isolados. E se até aqui não pude dar nenhum passo em direção a alguma coisa útil ou nova, é culpa dessa terrível linguagem, que nada de importante pode comunicar. E se alguém ousou me seguir até o fim dessa odisséia, não lhe posso dar nada mais que meus humildes pedidos de desculpas, e lembrá-lo que, desde o começo, avisei: nada que prestasse poderia sair daqui.
Até aí a linguagem cumpre um papel razoavelmente útil e, talvez, até mesmo preciso. Mas nada há de novo por trás disso. A função e limitações da linguagem já foram descritas por Karl Bühler, Ludwig Wittgenstein, entre outros. Não há nada de novo até aqui. E talvez não surja nada de novo adiante, mas apenas um desabafo, que recorre a essa própria traiçoera que é a linguagem, utilizada na forma em que apresenta-se com o máximo garbor: a escrita.
Entretanto, quando falo da falácia conspicuosa dessa vilã implacável não me refiro ao uso estritamente informativo, no qual ela, como mencionado, se mostra razoavelmente competente. Por outro lado, existe uma área que mais nos interessa, mas que nem por isso é-nos mais fácil de adentrar. Descrever o mundo é simples, descrever a nós mesmos é impossível.
Obviamente, no panorama meramente geométrico é fácil descrever um ser humano. Talvez, respondam-me os matemáticos, exista uma equação capaz de delinear em um gráfico as coordenadas de um protótipo da figura humana. Nada há de excepcional aqui, exceto o excesso de tempo que porventura acometeu o responsável pela determinação de tal equação. Porém, nós somos mais que a forma de nossos corpos. Na verdade essa forma talvez seja o aspecto mais irrelevante.
Por muito tempo me questionei sobre o que nos determina. Não quero dizer o que determina quem ou o que somos, qual nosso objetivo, quais nossos paradigmas morais ou culturais. Nada dessa bobagem efêmera. Mas sim o que realmente nos determina, o que tem significado para nós e acaba por nos fazer viver de um modo ou não de outro e, assim, indiretamente, sermos quem somos, termos nossos objetivos peculiares, criar leis morais e protocolos culturais. Afinal, o que é relevante para nossas vidas.
Pode parecer um tanto quanto óbvio, mas antecipo-me dizendo que já alertei ao leitor para que não espere por novidades aqui, sendo que, se uma expressão de decepção tomar seu rosto após a esperada revelação, é mais culpa dele que minha. E, dado o aviso, digo que o que mais importa é o que sentimos. Contudo, mais que o quê sentimos, é como sentimos. A maneira como cada sentimento nos afeta.
Já havia escrito em um texto empoeirado, perdido nas págimas possivelmente amareladas de um caderno que vaga incógnito pelo espaço que nos cerca, minha opinião a respeito de dois grupos de sentimentos. E aqui permito-me uma pausa para esclarecer o significado que, no momento, dou para o termo "sentimento". Não se trata, como no uso corrente, das sensações "sublimes" ou sutis que perfazem a vida humana e são geralmente descritos sob a alcunha de "amizade", "amor", "compaixão", "raiva", etc. De fato, esses significados também se aplicam ao que chamo de sentimento, mas não o esgotam. Muito mais que isso, os sentimentos de que falo dizem respeito a tudo que pode ser sentido, ou seja, qualquer impressão capaz de afetar os nossos sentidos, sejam os cinco famosos sentidos, tato, olfato, paladar, audição e visão, tão bem descritos por Aristóteles, ou os sentidos de mais difícil determinação, quais sejam a sensação de equilíbrio, os sentimentos, conformde citados acima, as diversas sensações, paixões, emoções, afetos, que constantemente inundam nossas vidas. Todos são coisas que sentimos. Indescritíveis. São sentimentos que colorem o quadro de nossa existência.
Não entrando em questões de filosofia mais avançada, mas uma explicação é necessária. Há muito já havia sido estabelecido que tudo que forma nossa existência são essas impressões. Vemos cores, ouvimos sons, e eles se organizam no espaço e no tempo, formando toda a trama de universo que conhecemos. Também nossos sentimentos internos mais simples se organizam, ora formando outros mais complexos, ora dando significados diferentes uns aos outros. E também se relacionando com as impressões externas. Dessa forma, não é de estranhar que à figura de uma pessoa relacionemos a sensação de amor, ou a um cheiro, a uma determinada melodia, uma outra sensação de carinho, ou outro elemento (para uma discussão mais filosoficamente acurada ver David Hume, A Treatise of Human Nature e An Enquiry concerning Human Understanding).
Assim, as impressões simples não podem ser descritas, pois são os elementos fundamentais da nossa experiência. O que descrevemos nada mais é que a maneira como esses elementos se organizam, novamente, no espaço ou no tempo. E dessas formas de organização, uma assaz interessante é a de sucessão temporal, cuja constância nos leva a concluir pela idéia de uma causalidade necessária (novamente ver Hume e, mais ainda, Immanuel Kant para uma discussão sobre a necessidade da idéia de "causa e efeito").
Enfim, nada disso interessa para a questão atual, que é a de desabafar e acusar essa megera que é a linguagem, a escrita, e as palavras, suas cúmplices. Como podem ver, podemos descrever a relação que as impressões mantêm entre si, mas não o que elas são de fato. Já é mais que admitido que não se pode dar a um cego de nascensa a noção da cor azul simplesmente por meio de palavras. Tampouco é possível fazer alguém que jamais experimentou um determinado sabor apenas tentando descrevê-la, a menos, é claro, apelando a outros sabores similares que a pessoa já tenha experimentado e, assim, se não puder fazer uma idéia perfeita do sabor que desejamos comunicar, fará ao menos uma aproximação com algo que já experimentara, mas o que em nada significa que apenas pelas palavras pudemos incitar tal idéia do sabor, uma vez que mais que palavras, foi necessária a experiência prévia com sabores similares para que uma tal aproximação fosse possível. Assim, pode-se concluir que há apenas duas formas de experimentar uma sensação: tendo contato direto com ela, ou seja, vendo a tal cor, ouvindo o som, experimentando um sabor, ou sentindo uma emoção, sentimento ou afeto correspondende. A outra maneira é revivendo na imaginação ou memória a sensação previamente experimentada, ainda que tal modo produza apenas uma idéia sutil da sensação em questão (para Hume, o primeiro caso comporia a "impressão" e o segundo a "imaginação". Nada que nos interesse no momento).
Retornando ao que disse vários parágrafos acima, sendo que todo esse devaneio foi apenas no intuito de explicar o que entendo pelo uso da palavra "sentimento", existem dois grupos em que as coisas que podemos sentir podem ser divididas: os sentimentos informativos e os motivacionais. Na verdade, para ser mais acurado, todos os sentimentos são informativos, inclusive os motivacionais, sendo estes apenas um subconjunto daquele. Os sentimentos informativos nos informam algo. Ou seja, quando percebo uma determinada cor, estou obtendo uma informação: "há ali tal cor", que é válida, se não para um possível mundo real, ao menos para a minha consciência, no sentido de "vejo ali uma cor, que faz parte do mundo que vejo". Sobre a questão invencível de se esse mundo que vejo existe de fato ou não prefiro reconhecer a dúvida inexorável.
Do mesmo modo, quando ouvimos um som, sentimos um cheiro, um sabor, ou mesmo uma sensação mais sutil, como a amizade, por exemplo, podemos dizer "sinto tal coisa". Percebemos que ela compõe esse mundo, que, ao menos para nós mesmos, é real. Porém, dentre essas coisas, algumas possuem um apelo motivacional, isto é, agradáveis ou desagradáveis. Eximindo-me do simplismo comportamentalista, não julgo agradáveis aquelas sensações que nos levam a adotar condutas que as façam ser repetidas. Ao contrário, adotamos tais condutas e buscamos repetir tais sensações devido ao fato de nos serem agradáveis. Quanto ao que é "ser agradável", é algo que, assim como a cor, não pode ser expresso em palavras, mas admito que não será difícil para ninguém fazer uma justa idéia de o que seja algo que cause prazer. Existe uma discussão sobre o que é o prazer em essência, se ele é uma propriedade de uma sensação ou se é por si só uma sensação única. Não pretendo entrar nessa discussão, apenas ponderar que uma mesma sensação pode ser prazerosa ou não, o que nos leva a pensar que o prazer causado por ela é algo independente da sensação. Por exemplo, o prazer de degustar um alimento, como um chocolate, é acompanhado de prazer. Todavia, após fartar-se de chocolate, qualquer pessoa ainda conserva a sensibilidade para tal gosto, de tal modo que facilmente identifica o sabor do chocolate e prontamente diz que o sabor não foi alterado. Porém, o prazer em comê-lo acaba, e a pessoa não mais deseja o alimento antes tão apreciado, e mesmo pode sentir repulsa pelo sabor que antes tanto desejara.
Contudo, não desejo me prolongar nesse assunto. O importante é que, dentre as sensações, algumas nos agradam e outras desagradam, enquanto outras ainda são indiferentes. As primeiras são informativas e motivacionais, as segundas, apenas informativas. Skinner errou ao considerar apenas o ponto de vista do reforço e punição, pois eles dizem respeito apenas às sensações que são também motivacionais, enquanto, de fato, relacionamos a todo tempo todas as sensações, motivacionais ou não. Considerar a perspectiva comportamentalista é, portanto, simplismo. O que não quer dizer que, domadas as suas pretensões infundadas, o que ela diz não seja revestido de uma certa verdade, ou, tendo a verdade como inatingível, ao menos capaz o bastante de descrever aspectos de nossa experiência com precisão suficiente para se tornar útil para nossos interesses.
E nossos interesses nada mais são que buscar prazer e evitar desprazer, como já afirmava Freud. A incompreensão desse tópico advém muito mais da pequenez das mentes que sobre ele refletem que da proposição. Prazer e desprazer fornecem uma gama imensa de possibilidades, muito maior que nossos exemplos corriqueiros podem dar conta. E algumas vezes o prazer ou desprazer podem estar escondidos sob relações complexas. Impressões que, para alguns, seriam apenas informativas, podem, para outros, relacionarem-se de algum modo a outras sensações, que envolvem um aspecto motivacional. E, dessa maneira, é infinita a quantidade de combinações e associações entre idéias e impressões, capazes de infinitas circunstâncias de prazer ou desprazer.
Dentre essas, encontramos a euforia, a honra, a ternura, ou mesmo sensações controversas, o prazer no sofrimento, a manutenção de adversidade, enfim, todos aqueles tópicos sobre os quais os psicólogos tanto se debatem tentando achar uma resposta. E não pretendo ser mais um deles no momento.
O fato é que, retornando à linguagem, ela é impossível. Quando se trata de extrapolar o caráter informativo, ela perde completamente sua precisão e, com ela, seu propósito. Se bem que, ao afirmar isso, estou colocando sobre a linguagem um objetivo que eu mesmo lhe dei, qual seja, o de transmitir algo que queremos transitir. Talvez a linguagem se preste a outros fins diversos, mas quando o intuito é fazer com que alguém sinta algo que você mesmo sente, isso se torna impossíve. Não tanto no que se refere a sentimentos banais, mas em relação a eles também. Ao falar que "estou feliz", consigo transmitir facilmente idéia, mas jamais posso me assegurar da precisão obtida pelo interlocutor no entendimento. Mas essa comunicação serve ao menos para fins práticos, pois meu interlocutor pode associar minha afirmação com uma certa variedade de fenômenos comuns a pessoas que se autodeclaram felizes, de modo a adequar suas escolhas e comportamentos à satisfação de seus interesses, ou seja, obter prazer e evitar desprazer.
Por outro lado, quando tomado por sensações de natureza mais complexa, sequer esse efeito é obtido, e a linguagem se perde completamente. Desintegra-se. Nesse exato momento, não consigo descobrir um único exemplo que mostre de quais sensações estou falando. As palavras me escapam completamente. Assim como descrever a cor azul, é impossível descrever esse sentimento. Tampouco pude descrever a sensação de felicidade, mas ao usá-la empreguei um termo comumente usado e, presumivelmente, correspondente a uma sensação que diversas pessoas já sentiram em suas vidas e associam ao nome de "felicidade". Portanto, mais que descrever a sensação correspondente à palavra, apenas a utilizei, e espero que a familiaridade com o significado leve prontamente o leitor a formular a idéia correspondente. Entretanto, ao tentar comunicar sensações que são menos comuns, ou que talvez apenas uma pequena quantidade de pessoas tenha tido a possibilidade de conhecer, vejo-me debatendo inutilmente com o teclado do computador. E dele não pode sair solução alguma para o meu problema.
Dessa forma, coloca-se o problema dos textos que quero escrever. Mas são textos impossíveis, palavras que não existem e não podem ser ditas. São textos que existem apenas em minha mente, que pulsam junto com meu coração, mas que uma vez derramados sob a forma fria de palavras, perdem seu significado. Tento me aproximar, usar a linguagem que mais se aproxima, explicar os motivos que levaram e os acontecimentos que sucederam, as circunstâncias... mas não. Releio, e no mesmo instante vejo que tudo se perdeu. São apenas palavras. Que serão associadas a infinitos outros significados por cada pessoa que as ler, mas que já perderam por completo o significado que as dei.
Tudo bem, admito que ainda assim essas palavras têm seu valor. Podem desencadear inúmeras sensações, divertir, entusiasmar, entreter, irritar, podem levar por todas as veredas do universo ou por todos os amálgamas de sensações humanas. Porém, acertar exatamente aquela que eu havia planejado é mais difícil que acertar um específico átomo perdido na poeira estelar em alguma galáxia desconhecida no universo infinito. Não! O significado só existe para mim. É incomunicável. Sou mudo, não posso escrever, não posso me comunicar. Preso nas minhas próprias idiossincrasias. Culpa da linguagem, essa ingrata, que nos priva de comunicar aquilo que justamente mais queremos, e nos encarcera em nossa própria existência, sozinhos, isolados. E se até aqui não pude dar nenhum passo em direção a alguma coisa útil ou nova, é culpa dessa terrível linguagem, que nada de importante pode comunicar. E se alguém ousou me seguir até o fim dessa odisséia, não lhe posso dar nada mais que meus humildes pedidos de desculpas, e lembrá-lo que, desde o começo, avisei: nada que prestasse poderia sair daqui.
quinta-feira, 1 de março de 2012
Mais uma trova...
Queria te ter p'ra sempre
Mas isso não é possível!
Não sendo eternamente,
que seja inesquecível!
Mas isso não é possível!
Não sendo eternamente,
que seja inesquecível!
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