quarta-feira, 31 de outubro de 2012

SAINTS OF WAR - CAPÍTULO 1 - A CASA DE ÁRIES

Diante da figura inflexível do Cavaleiro de Ouro de Áries, Kratos esboçou um sorriso irônico. Seus olhos continham o ódio acumulado por cada homem que recebeu a morte de formas horrendas daquelas mãos. O sangue dos guerreiros que matou durante anos banhou suas espadas, e o dos guerreiros do santuário ainda respingava quente das afiadas lâminas. A voz grave e imponente de Kratos ecoou:

- Para o meu bem? Eu já matei Deuses, cavaleiro. Veja só o destino dos guerreiros que tentaram me impedir. Pense melhor antes de ficar no meu caminho.

Atrás de Kratos, um mar de sangue cobria as ruas do santuário que levavam às doze casas. O Cavaleiro Mu de Áries, porém, sequer levantou os olhos. Sua serenidade permanecia inabalável.

- Você se vangloria de ter matado Deuses, mas não sabe que há milênios vários deles tentaram chegar ao topo dessa escadaria... e não sei de nenhum que tenha conseguido. Você travou combates com os Deuses durante sua vida, enquanto nós sempre estivemos preparados para derrotar todos eles por toda a história. Não, espartano... nem a luta mais sangrenta, a guerra mais impiedosa, nem a fúria dos deuses, nada se compara ao desafio presente em cada degrau dessa escadaria...

- Veremos... - foi o que Kratos disse e, mal sua boca se fechou, ele se atirou sobre a escadaria, em direção ao Cavaleiro Mu. Suas espadas firmemente presas às mãos descolaram-se furiosamente em direção ao cavaleiro, mas pouco antes de lhe tocar o corpo foram detidas no ar e Kratos sentiu como se todo o seu corpo fosse atirado contra uma rocha maciça indestrutível. Com o impacto, foi arremessado para trás, de volta às escadas. O cavaleiro continuava parado no topo das escadas, impedindo o acesso à entrada da primeira casa. Nada parecia explicar o fato do golpe do espartano não haver funcionado. Mas isso não espantou o guerreiro espartano. Durante sua vida várias vezes se deparou com obstáculos que pareciam indestrutíveis, porém que pouco depois mostravam a fragilidade.

Nada há que a força bruta não resolva! E voltou a desferir golpes contra o Cavaleiro de Atena, dessa vez usando uma sequência rápida de golpes de espada. Nesse momento percebeu que uma parede quase invisível tremulava à frente do cavaleiro dourado toda vez que um golpe se aproximava de atingi-lo. Kratos continuava obstinadamente a golpear a barreira invisível, mas parecia que ela jamais cederia. Mu permanecia tranquilo, sem proferir mais nenhuma palavra. Percebendo que não obteria êxito daquela forma, Kratos se afastou poucos passos e disse:

- Vocês são os cavaleiros de Atena, mas foi a mim que ela deu a missão de recuperar a caixa de pandora e derrotar Zeus. E mais que isso... os poderes dela e dos demais Deuses ainda estão comigo!

E Kratos soltou um grito, enquanto disparava uma poderosa tempestade elétrica, habilidade que recebeu de Poseidon anos antes. O chão se quebrou, as colunas da casa de Áries começaram a se partir, e finalmente a resistência da parede de cristal criada por Mu começou a passar a sofrer um teste à sua altura. O Cavaleiro de Atena se convenceu então de que não bastaria conter aquele guerreiro, ele não desistiria, era o momento de derrotá-lo. Em uma fração de segundo a parede de cristal foi desfeita e a postura defensiva de Mu se converteu num grito efusivo:

- Starlight extinction!

Uma luz ofuscante cercou Kratos, que ainda usava seu golpe. Rapidamente uma explosão ocorreu e Kratos foi atirado para longe violentamente. Atingiu o chão violentamente. Suas espadas foram arremessadas para longe, permanecendo presas a ele apenas pela corrente que as mantinha sempre em suas mãos. Kratos se levantou, sentiu sangue escorrendo pelo seu corpo... seu sangue. Não se lembrava da última vez quando um simples mortal o havia conseguido fazer sangrar com apenas um golpe.

Kratos parou e olhou fixamente para Mu, agora distante, ainda no topo da escadaria que leva à entrada da casa de Áries. Parou e ali ficou por um tempo. Não por medo, não por hesitar ou duvidar de sua capacidade de passar por ali, mas simplesmente por compreender então que, como os Deuses, aquele homem não cederia a golpes ao acaso. Seria preciso mais que força para passar por ali. E ele passaria!

Kratos, então, considerou por um momento quais seriam as melhores formas para atacar aquele irritante adversário. Havendo chegado a uma conclusão, partiu para ação. Rapidamente saltou em direção ao Cavaleiro de Áries, presumindo que seu golpe seria detido pela parede de cristal. Com um das mãos, então, desferiu um golpe de espada contra o seu oponente, enquanto com a outra mão lançou a espada em direção à uma das pilastras que ficavam ao redor. A espada, presa à uma corrente, se enroscou na pilastra, que foi puxada por Kratos, enquanto com a outra mão prosseguia golpeando a muralha produzida pelo Cavaleiro de Atena. Dessa forma, desferiu um ataque lateral contra seu adversário, lançando a pesada pilastra contra ele, em um ângulo que inviabilizava a utilização da parede de cristal. Além disso, com o deslocamento abrupto do pilar de sustentação, parte do teto da casa de áries se desprendeu, caindo sobre Mu. O Cavaleiro de Ouro conseguiu rapidamente proteger-se da pilastra, partindo-a com um soco, mantendo ainda a parede de cristal que o protegia dos ataques frontais, mas precisou alterar sua postura para evitar ser atingido pelo desabamento do teto. Isso enfraqueceu sua capacidade de manter a proteção de cristal, que continuava sujeita aos poderosos e rápidos golpes de Kratos.

O espartano, por sua vez, logo após realizar o ataque à pilastra da casa de Mu, pegou novamente a espada usada e com ela passou a golpear a muralha de cristal, liberando a outra mão, que antes desferia os ataques frontais, para que ela também conseguisse deslocar uma pilastra da casa de áries, agora do lado oposto ao da primeira. Toda essa sequência de golpes foi feita com extrema rapidez e força, características marcantes do guerreiro espartano.

Tão logo Mu se desvencilho da primeira pilastra, precisou desfazer sua postura para se proteger do teto e foi atingido pela segunda pilastra lançada por Kratos, perdendo então completamente a capacidade de manter a parede de cristal. Com o impacto recebido pela grande massa rígida da segunda pilastra, Mu foi atirado para o lado, ficando desprotegido contra os ataques do fantasma de Esparta. Kratos se atirou sobre o corpo de Mu, golpeando-o enquanto ele ainda estava no ar. O Cavaleiro de Atena foi lançado, então, fortemente contra o chão, sem tempo de reagir contra os golpes de Kratos, que seguia lhe atingindo seguidamente com grande velocidade. 

Caídos no chão, Mu por baixo e Kratos por cima a lhe golpear, seria uma questão de pouco tempo até que Mu sucumbisse aos golpes de seu oponente. Entretanto, não é tão simples derrotar os Cavaleiros de Atena. Ferido pelos poderosos golpes de Kratos, Mu conseguiu usar os braços para evitar que as lâminas das espadas do espartano lhe causassem danos fatais. A proximidade entre os dois combatentes impedia que o Cavaleiro do Santuário adotasse as posições necessárias para desferir golpes capazes de lhe tirar da situação. Sua maior preocupação era evitar que as lâminas de Kratos tocassem em locais vitais de seu corpo. Percebendo que a armadura de ouro não cederia aos golpes de suas espadas, Kratos tentava atingir diretamente o rosto de Mu. Não conseguia ter espaço para usar técnicas de combate que não dependessem dos golpes físicos, pois a proximidade entre ambos inviabilizava os movimentos necessários. Contudo, Kratos sabia que conseguiria superar Mu na força física e que o cavaleiro também não conseguiria desferir seus golpes, nem usar sua parede de cristal, enquanto eles estivessem naquela posição. Seria questão de tempo até Mu ceder aos golpes e ser derrotado!

Então Kratos dirigiu suas duas espadas diretamente ao rosto de Mu, sendo bloqueado pelos punhos do Cavaleiro de Atena, que seguraram suas mãos e impediram que as suas espadas lhe tocassem o rosto. Ficaram ali, naquela posição, exercendo uma força magnífica, cujo equilíbrio resultava na imobilidade de ambos os lutadores. Kratos tentava aplicar cada vez mais força, certo de que logo seu adversário cederia e teria as espadas cravadas bem no meio do rosto. Porém Mu já esperava por isso. Custava-lhe muita força resistir à pressão exercida por Kratos, mas quando ela se tornou suficientemente alta, Mu empurrou rapidamente com uma das pernas o joelho de Kratos, deslocando o equilíbrio de seu adversário, enquanto ao mesmo tempo curvou a cabeça para o lado, tirando-a da direção das espadas, e levantou violentamente o abdome, sobre o qual Kratos se localizava, jogando-o para o lado que havia ficado desequilibrado. Tudo isso se processou rapidamente, com as espadas do espartano fincando-se no chão, enquanto seu corpo era atirado de lado por Mu, que agora ficava por cima. Aproveitando o movimento, o Cavaleiro de Atena salta ao alto, ganhando espaço para desferir um golpe:

- Stardust Revolution!!!

A casa de áries se iluminou. Durante um momento todas as imagens se ofuscaram ante o brilho do golpe de Mu. Uma grande massa de poeira se levantou e apenas lentamente ela foi baixando, deixando entrever aos poucos uma enorme cratera formada no piso da casa de áries devido ao golpe. Mu parecia descansar. Embora todos os cavaleiros passem por rigorosos treinamentos físicos, essa não é a especialidade do Cavaleiro de Áries e o grande vigor e força do fantasma de Esparta foi um duro teste imposto a ele. A poeira continuava a se dissipar. Em meio a ela, uma silhueta começava a se formar, ao longe. Mu olhou espantado em direção a ela e quando ela finalmente tornou-se totalmente visível, não pôde deixar de pensar:

- Não é possível que ele consiga estar de pé após ter recebido meu golpe!

Kratos estava parado a vários metros de Mu. A parte de seu corpo inferior à cintura estava seriamente ferida. Aparentemente, quando Mu desferiu seu golpe, a grande agilidade do guerreiro espartano serviu para que ele desviasse a parte superior do corpo do principal impacto do golpe, mas a parte inferior foi atingida em cheio. Mesmo assim, isso não foi suficiente para derrotá-lo e mesmo com grandes ferimentos na parte inferior do abdome e nas pernas, Kratos permanecia de pé.

- Não pense que será tão fácil me vencer, cavaleiro! - Disse Kratos.

Entretanto, com o grande espaço que agora havia entre eles, novamente a vantagem era de Mu, que poderia voltar a usar a parede de cristal, e certamente não se deixaria surpreender novamente pela primeira estratégia usada por Kratos. Novamente ambos os lutadores ficaram parados por algum tempo, considerando suas estratégias de luta.

Essa aparente tranquilidade é rapidamente abalada quando Kratos parte em direção a Mu, enquanto este continua parado em sua postura defensiva. Contudo, prevendo o uso da parede de cristal, o espartano não ataca diretamente Mu. Em vez disso, ele atira as suas espadas para os lados e golpeia o chão com os punhos nus, usando uma técnica aprendida com o Titã Atlas, capaz de causar um devastador terremoto. Com isso, o ataque sobre Mu vem de baixo, e não da parte de cima e dos lados como anteriormente. Porém, diferentemente do esperado, Mu não usa a parede de cristal, também presumindo que o guerreiro de Esparta estaria precavido contra essa técnica. Ao contrário, o Cavaleiro do Santuário desfaz sua postura defensiva e ataca Kratos, usando novamente seu golpe "Revolução estelar". Kratos é golpeado, mas Mu também. Após acertar seu adversário, o Cavaleiro de Atena tenta minimizar o impacto recebido pelo terremoto, que causou uma protusão do piso da casa de áries, atingindo-o de baixo para cima. Para isso, Mu pula, mas desde o início isso havia sido planejado por Kratos. As suas espadas, que lançou no início do golpe, atingem todas as pilastras da casa de áries em sequência e, somado ao dano causado pelo terremoto, faz com que a construção onde estão desmorone. Mu estava pulando para fugir do piso da casa que levantava em sua direção e não pôde se defender do teto que desabada sobre sua cabeça. O cavaleiro é lançado ao chão, de encontro ao piso do qual tentava escapar. Depois de haver atingido Mu, o chão que havia se levantado com o tremor cede aos deslizamentos de terra e retorna novamente para baixo, levando junto de si os destroços do teto que caíram sobre Mu e o próprio cavaleiro para baixo da terra, onde é soterrado dentro de uma grande fenda que se abre no solo e é aterrada com todo a rocha desprendida da casa desabada.

Kratos, que não esperava receber um ataque direto do Mu, também é atingido pelo desabamento. Contudo, não é tragado pela fenda no solo, conseguindo abrir espaço entre os escombros para sair debaixo deles. Seu corpo estava ferido pelos golpes de Mu e pelo próprio desabamento que acabara de causar, mas não era o melhor momento para se preocupar com isso. Havia um obstáculo a menos entre Kratos e sua vingança. Era a hora de seguir em direção à casa de touro.

terça-feira, 20 de março de 2012

De quê adianta desejar verdades, se te oferecem apenas mentiras?

quarta-feira, 7 de março de 2012

A impossibilidade da palavra

É impossível escrever. A literatura é ilusão, engodo, é mentira, desonestidade, é pilantragem. Por isso não posso escrever. Ao menos não sobre o que quero. A escrita não dá conta perfeitamente das idéias. Pode até dar uma vaga noção, com eficácia prática, sobre a organização própria de diversas circunstâncias. Pode nos dar noções espaciais: acima, abaixo, do lado, atrás; temporais: antes, depois, simultaneidade; e das noções espaciais surgem as formas, e as formas compõem objetos, e os objetos se relacionam com outros objetos no espaço e no tempo. Novamente, ficam acima, abaixo, vêm antes, depois ou coexistem em um dado tempo.

Até aí a linguagem cumpre um papel razoavelmente útil e, talvez, até mesmo preciso. Mas nada há de novo por trás disso. A função e limitações da linguagem já foram descritas por Karl Bühler, Ludwig Wittgenstein, entre outros. Não há nada de novo até aqui. E talvez não surja nada de novo adiante, mas apenas um desabafo, que recorre a essa própria traiçoera que é a linguagem, utilizada na forma em que apresenta-se com o máximo garbor: a escrita.

Entretanto, quando falo da falácia conspicuosa dessa vilã implacável não me refiro ao uso estritamente informativo, no qual ela, como mencionado, se mostra razoavelmente competente. Por outro lado, existe uma área que mais nos interessa, mas que nem por isso é-nos mais fácil de adentrar. Descrever o mundo é simples, descrever a nós mesmos é impossível.

Obviamente, no panorama meramente geométrico é fácil descrever um ser humano. Talvez, respondam-me os matemáticos, exista uma equação capaz de delinear em um gráfico as coordenadas de um protótipo da figura humana. Nada há de excepcional aqui, exceto o excesso de tempo que porventura acometeu o responsável pela determinação de tal equação. Porém, nós somos mais que a forma de nossos corpos. Na verdade essa forma talvez seja o aspecto mais irrelevante.

Por muito tempo me questionei sobre o que nos determina. Não quero dizer o que determina quem ou o que somos, qual nosso objetivo, quais nossos paradigmas morais ou culturais. Nada dessa bobagem efêmera. Mas sim o que realmente nos determina, o que tem significado para nós e acaba por nos fazer viver de um modo ou não de outro e, assim, indiretamente, sermos quem somos, termos nossos objetivos peculiares, criar leis morais e protocolos culturais. Afinal, o que é relevante para nossas vidas.

Pode parecer um tanto quanto óbvio, mas antecipo-me dizendo que já alertei ao leitor para que não espere por novidades aqui, sendo que, se uma expressão de decepção tomar seu rosto após a esperada revelação, é mais culpa dele que minha. E, dado o aviso, digo que o que mais importa é o que sentimos. Contudo, mais que o quê sentimos, é como sentimos. A maneira como cada sentimento nos afeta.

Já havia escrito em um texto empoeirado, perdido nas págimas possivelmente amareladas de um caderno que vaga incógnito pelo espaço que nos cerca, minha opinião a respeito de dois grupos de sentimentos. E aqui permito-me uma pausa para esclarecer o significado que, no momento, dou para o termo "sentimento". Não se trata, como no uso corrente, das sensações "sublimes" ou sutis que perfazem a vida humana e são geralmente descritos sob a alcunha de "amizade", "amor", "compaixão", "raiva", etc. De fato, esses significados também se aplicam ao que chamo de sentimento, mas não o esgotam. Muito mais que isso, os sentimentos de que falo dizem respeito a tudo que pode ser sentido, ou seja, qualquer impressão capaz de afetar os nossos sentidos, sejam os cinco famosos sentidos, tato, olfato, paladar, audição e visão, tão bem descritos por Aristóteles, ou os sentidos de mais difícil determinação, quais sejam a sensação de equilíbrio, os sentimentos, conformde citados acima, as diversas sensações, paixões, emoções, afetos, que constantemente inundam nossas vidas. Todos são coisas que sentimos. Indescritíveis. São sentimentos que colorem o quadro de nossa existência.

Não entrando em questões de filosofia mais avançada, mas uma explicação é necessária. Há muito já havia sido estabelecido que tudo que forma nossa existência são essas impressões. Vemos cores, ouvimos sons, e eles se organizam no espaço e no tempo, formando toda a trama de universo que conhecemos. Também nossos sentimentos internos mais simples se organizam, ora formando outros mais complexos, ora dando significados diferentes uns aos outros. E também se relacionando com as impressões externas. Dessa forma, não é de estranhar que à figura de uma pessoa relacionemos a sensação de amor, ou a um cheiro, a uma determinada melodia, uma outra sensação de carinho, ou outro elemento (para uma discussão mais filosoficamente acurada ver David Hume, A Treatise of Human Nature e An Enquiry concerning Human Understanding).

Assim, as impressões simples não podem ser descritas, pois são os elementos fundamentais da nossa experiência. O que descrevemos nada mais é que a maneira como esses elementos se organizam, novamente, no espaço ou no tempo. E dessas formas de organização, uma assaz interessante é a de sucessão temporal, cuja constância nos leva a concluir pela idéia de uma causalidade necessária (novamente ver Hume e, mais ainda, Immanuel Kant para uma discussão sobre a necessidade da idéia de "causa e efeito").

Enfim, nada disso interessa para a questão atual, que é a de desabafar e acusar essa megera que é a linguagem, a escrita, e as palavras, suas cúmplices. Como podem ver, podemos descrever a relação que as impressões mantêm entre si, mas não o que elas são de fato. Já é mais que admitido que não se pode dar a um cego de nascensa a noção da cor azul simplesmente por meio de palavras. Tampouco é possível fazer alguém que jamais experimentou um determinado sabor apenas tentando descrevê-la, a menos, é claro, apelando a outros sabores similares que a pessoa já tenha experimentado e, assim, se não puder fazer uma idéia perfeita do sabor que desejamos comunicar, fará ao menos uma aproximação com algo que já experimentara, mas o que em nada significa que apenas pelas palavras pudemos incitar tal idéia do sabor, uma vez que mais que palavras, foi necessária a experiência prévia com sabores similares para que uma tal aproximação fosse possível. Assim, pode-se concluir que há apenas duas formas de experimentar uma sensação: tendo contato direto com ela, ou seja, vendo a tal cor, ouvindo o som, experimentando um sabor, ou sentindo uma emoção, sentimento ou afeto correspondende. A outra maneira é revivendo na imaginação ou memória a sensação previamente experimentada, ainda que tal modo produza apenas uma idéia sutil da sensação em questão (para Hume, o primeiro caso comporia a "impressão" e o segundo a "imaginação". Nada que nos interesse no momento).

Retornando ao que disse vários parágrafos acima, sendo que todo esse devaneio foi apenas no intuito de explicar o que entendo pelo uso da palavra "sentimento", existem dois grupos em que as coisas que podemos sentir podem ser divididas: os sentimentos informativos e os motivacionais. Na verdade, para ser mais acurado, todos os sentimentos são informativos, inclusive os motivacionais, sendo estes apenas um subconjunto daquele. Os sentimentos informativos nos informam algo. Ou seja, quando percebo uma determinada cor, estou obtendo uma informação: "há ali tal cor", que é válida, se não para um possível mundo real, ao menos para a minha consciência, no sentido de "vejo ali uma cor, que faz parte do mundo que vejo". Sobre a questão invencível de se esse mundo que vejo existe de fato ou não prefiro reconhecer a dúvida inexorável.

Do mesmo modo, quando ouvimos um som, sentimos um cheiro, um sabor, ou mesmo uma sensação mais sutil, como a amizade, por exemplo, podemos dizer "sinto tal coisa". Percebemos que ela compõe esse mundo, que, ao menos para nós mesmos, é real. Porém, dentre essas coisas, algumas possuem um apelo motivacional, isto é, agradáveis ou desagradáveis. Eximindo-me do simplismo comportamentalista, não julgo agradáveis aquelas sensações que nos levam a adotar condutas que as façam ser repetidas. Ao contrário, adotamos tais condutas e buscamos repetir tais sensações devido ao fato de nos serem agradáveis. Quanto ao que é "ser agradável", é algo que, assim como a cor, não pode ser expresso em palavras, mas admito que não será difícil para ninguém fazer uma justa idéia de o que seja algo que cause prazer. Existe uma discussão sobre o que é o prazer em essência, se ele é uma propriedade de uma sensação ou se é por si só uma sensação única. Não pretendo entrar nessa discussão, apenas ponderar que uma mesma sensação pode ser prazerosa ou não, o que nos leva a pensar que o prazer causado por ela é algo independente da sensação. Por exemplo, o prazer de degustar um alimento, como um chocolate, é acompanhado de prazer. Todavia, após fartar-se de chocolate, qualquer pessoa ainda conserva a sensibilidade para tal gosto, de tal modo que facilmente identifica o sabor do chocolate e prontamente diz que o sabor não foi alterado. Porém, o prazer em comê-lo acaba, e a pessoa não mais deseja o alimento antes tão apreciado, e mesmo pode sentir repulsa pelo sabor que antes tanto desejara.

Contudo, não desejo me prolongar nesse assunto. O importante é que, dentre as sensações, algumas nos agradam e outras desagradam, enquanto outras ainda são indiferentes. As primeiras são informativas e motivacionais, as segundas, apenas informativas. Skinner errou ao considerar apenas o ponto de vista do reforço e punição, pois eles dizem respeito apenas às sensações que são também motivacionais, enquanto, de fato, relacionamos a todo tempo todas as sensações, motivacionais ou não. Considerar a perspectiva comportamentalista é, portanto, simplismo. O que não quer dizer que, domadas as suas pretensões infundadas, o que ela diz não seja revestido de uma certa verdade, ou, tendo a verdade como inatingível, ao menos capaz o bastante de descrever aspectos de nossa experiência com precisão suficiente para se tornar útil para nossos interesses.

E nossos interesses nada mais são que buscar prazer e evitar desprazer, como já afirmava Freud. A incompreensão desse tópico advém muito mais da pequenez das mentes que sobre ele refletem que da proposição. Prazer e desprazer fornecem uma gama imensa de possibilidades, muito maior que nossos exemplos corriqueiros podem dar conta. E algumas vezes o prazer ou desprazer podem estar escondidos sob relações complexas. Impressões que, para alguns, seriam apenas informativas, podem, para outros, relacionarem-se de algum modo a outras sensações, que envolvem um aspecto motivacional. E, dessa maneira, é infinita a quantidade de combinações e associações entre idéias e impressões, capazes de infinitas circunstâncias de prazer ou desprazer.

Dentre essas, encontramos a euforia, a honra, a ternura, ou mesmo sensações controversas, o prazer no sofrimento, a manutenção de adversidade, enfim, todos aqueles tópicos sobre os quais os psicólogos tanto se debatem tentando achar uma resposta. E não pretendo ser mais um deles no momento.

O fato é que, retornando à linguagem, ela é impossível. Quando se trata de extrapolar o caráter informativo, ela perde completamente sua precisão e, com ela, seu propósito. Se bem que, ao afirmar isso, estou colocando sobre a linguagem um objetivo que eu mesmo lhe dei, qual seja, o de transmitir algo que queremos transitir. Talvez a linguagem se preste a outros fins diversos, mas quando o intuito é fazer com que alguém sinta algo que você mesmo sente, isso se torna impossíve. Não tanto no que se refere a sentimentos banais, mas em relação a eles também. Ao falar que "estou feliz", consigo transmitir facilmente idéia, mas jamais posso me assegurar da precisão obtida pelo interlocutor no entendimento. Mas essa comunicação serve ao menos para fins práticos, pois meu interlocutor pode associar minha afirmação com uma certa variedade de fenômenos comuns a pessoas que se autodeclaram felizes, de modo a adequar suas escolhas e comportamentos à satisfação de seus interesses, ou seja, obter prazer e evitar desprazer.

Por outro lado, quando tomado por sensações de natureza mais complexa, sequer esse efeito é obtido, e a linguagem se perde completamente. Desintegra-se. Nesse exato momento, não consigo descobrir um único exemplo que mostre de quais sensações estou falando. As palavras me escapam completamente. Assim como descrever a cor azul, é impossível descrever esse sentimento. Tampouco pude descrever a sensação de felicidade, mas ao usá-la empreguei um termo comumente usado e, presumivelmente, correspondente a uma sensação que diversas pessoas já sentiram em suas vidas e associam ao nome de "felicidade". Portanto, mais que descrever a sensação correspondente à palavra, apenas a utilizei, e espero que a familiaridade com o significado leve prontamente o leitor a formular a idéia correspondente. Entretanto, ao tentar comunicar sensações que são menos comuns, ou que talvez apenas uma pequena quantidade de pessoas tenha tido a possibilidade de conhecer, vejo-me debatendo inutilmente com o teclado do computador. E dele não pode sair solução alguma para o meu problema.

Dessa forma, coloca-se o problema dos textos que quero escrever. Mas são textos impossíveis, palavras que não existem e não podem ser ditas. São textos que existem apenas em minha mente, que pulsam junto com meu coração, mas que uma vez derramados sob a forma fria de palavras, perdem seu significado. Tento me aproximar, usar a linguagem que mais se aproxima, explicar os motivos que levaram e os acontecimentos que sucederam, as circunstâncias... mas não. Releio, e no mesmo instante vejo que tudo se perdeu. São apenas palavras. Que serão associadas a infinitos outros significados por cada pessoa que as ler, mas que já perderam por completo o significado que as dei.

Tudo bem, admito que ainda assim essas palavras têm seu valor. Podem desencadear inúmeras sensações, divertir, entusiasmar, entreter, irritar, podem levar por todas as veredas do universo ou por todos os amálgamas de sensações humanas. Porém, acertar exatamente aquela que eu havia planejado é mais difícil que acertar um específico átomo perdido na poeira estelar em alguma galáxia desconhecida no universo infinito. Não! O significado só existe para mim. É incomunicável. Sou mudo, não posso escrever, não posso me comunicar. Preso nas minhas próprias idiossincrasias. Culpa da linguagem, essa ingrata, que nos priva de comunicar aquilo que justamente mais queremos, e nos encarcera em nossa própria existência, sozinhos, isolados. E se até aqui não pude dar nenhum passo em direção a alguma coisa útil ou nova, é culpa dessa terrível linguagem, que nada de importante pode comunicar. E se alguém ousou me seguir até o fim dessa odisséia, não lhe posso dar nada mais que meus humildes pedidos de desculpas, e lembrá-lo que, desde o começo, avisei: nada que prestasse poderia sair daqui.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Mais uma trova...

Queria te ter p'ra sempre
Mas isso não é possível!
Não sendo eternamente,
que seja inesquecível!